Capítulo 6 (Nobre Plebeia)

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A mansão Von Clifford era de longe a construção mais imponente na cidade fortaleza de Acanan. Situava-se sobre uma baixa colina, dando ao conde Allan, uma posição estratégica perfeita para administrar e prover guarnições ao mesmo tempo em casos de sítio e invasões de todo tipo. A grande estrutura era rodeada por muros altos com ameias de cerca de 1,5 m de largura e uma espessura que se aproximava de 1,20m nas partes mais grossas. Nos quatro cantos onde os muros se encontravam, guaritas permitiam aos defensores mirar com arcos ou bestas nos atacantes com a proteção das paredes de pedra.
Apesar de bem ornamentadas com armaduras e quadros de ancestrais, as paredes eram frias e os corredores quase desertos, salvo pela presença dos empregados e servos.


Uma jovem donzela saía de mais uma aula enfadonha de história do continente. Ela já estava no limiar da porta quando parou ouvindo seu professor.
- Senhorita, Berenice, quero que prepare anotações detalhadas sobre os pontos estratégicos usados no passado para defender a costa oeste de Thalema contra invasões piratas e quais as possíveis medidas a serem tomadas caso uma das cidades fortaleza fosse tomada.
- Mestre, Edwinn... Eu esperava fortemente que esta semana não tivéssemos trabalhos de pesquisa... - ela aguardou uns segundos esperando que o senhor de aparência austera levasse em consideração a data que se aproximava.
- Não sei o que poderia impedir a senhorita de realizar um simples trabalho de pesquisa em alguns mapas.
- Bem... - iniciou, juntando seus indicadores num gesto meigo, que geralmente funcionava para convencer a maioria das pessoas, a fim de ganhar a afeição do mestre para desistir do trabalho. - Nessa semana se aproximam duas datas muito importantes para mim. Uma delas é a data de falecimento de minha mãezinha e a outra...
- A outra é seu décimo oitavo aniversário, estou certo? - ele pareceu estar consternado por alguns segundos. - Me desculpe pela rudeza de não me lembrar antes, Lady Beny. Mas, ainda assim, quero o trabalho em minha mesa... - Berenice ia protestar quando ele continuou - na outra semana! Achou mesmo que este velho e carrancudo professor não lhe daria uma trégua? - respondeu abrindo um raro sorriso.
Os olhos da menina se encheram de alegria. Correu até o professor e o abraçou feliz. Depois saiu porta a fora saltitando pelo corredor.
Berenice tinha planos para seu aniversário de maior idade. A muito pedira um favor a seu pai, e este a negara. Mas agora, sendo uma mulher adulta, ele não poderia lhe objetar.

Algumas horas mais tarde, ela se dirigiu ao gabinete do conde e entrou mesmo sem ser anunciada. Ele estava debruçado sobre incontáveis pergaminhos e cartas. Atrás dele uma lareira queimava suas ultimas brasas e o ambiente começava a ficar frio. Passou tanto tempo lendo os documentos que não se atentou de mandar os servos buscarem mais lenha. Sobre a mesa, junto aos papéis, um candelabro de prata ostentava quatro velas já pela metade, queimando o pavio e iluminando a mesa projetando uma sombra estranha do homem na parede oposta.
─ Meu pai, gostaria de um momento! ─ disse ela adentrando a sala.
Conde Allan foi tomado de surpresa ao ver sua filha rompendo pela sala pedindo sua atenção. Antes mesmo de a porta se fechar, ele ainda conseguiu ver a expressão de impotência do guarda do lado de fora. "Que menina geniosa! Exatamente como Arriza..."
Ele se ajeitou na cadeira e firmou seus olhos em Berenice.
─ Com todo esse rompante... Como eu poderia negar um minuto? ─ respondeu ele sério para a filha.
─ Não irei elaborar palavreados pomposos! - disse ela encurtando todos os protocolos possíveis com a esperança de que sua altivez e seu ímpeto quebrassem os argumentos do conde - Apenas quero permissão para andar pela cidade...
─ Negado! - respondeu ele voltando seus olhos para os papéis.
Berenice ficou chocada com a simplicidade com a qual seu pai respondeu e voltou ao trabalho.
─ Meu pai, devo protestar! Acredito que... - ela buscava palavras amenas para externar o que lhe veio à mente. - talvez possa ter se esquecido da data que se aproxima...
─ Não... Não me esqueci do seu aniversário, seu presente está em seu quarto. Eu mesmo o escolhi. Espero que goste. ─ ele voltou seus olhos para a filha por um momento para a ver com os olhos marejados, rosto enrubescido por indignação e lábios tremendo. ─ Benny, querida, sabe que tenho muitos inimigos. Imagine o que fariam se pudessem ter nas mãos a filha do Conde de Acanan? ─ ele pareceu estremecer ao imaginar a possibilidade.
─ Meu pai, ─ ela teve que controlar sua voz para não demonstrar o choro que queria irromper por seus olhos ─ serei uma adulta completa em algumas horas... Como pode me negar um simples passeio por nossa cidade? Todas as aulas com mestre Edwinn não contam como conhecimento para saber me portar fora destes muros? Acaso, um dia, não terei eu mesma que tomar conta da administração desta cidade para o Rei?
─ Benny... não insista! - Allan parecia estar perdendo a paciência. ─ Você terá o seu futuro marido para isso... ─ Allan interrompeu sua frase, mas quando percebeu era tarde demais. Ele falara de forma que a filha pôde entender nas entrelinhas.
─ Futuro marido? Futuro Marido? ─ Berenice estava ainda mais consternada. ─ Você quebrou a promessa que fez a minha mãe? Eu não posso acreditar! ─ ela andava pelo gabinete, exasperada.
Allan se levantou e usou sua autoridade de Conde para frear a filha.
─ Chega! ─ esbravejou como uma trovoada batendo com o punho no tampo da mesa, fazendo o som ecoar pelo corredor fora do gabinete até as portas duplas no final do caminho.
Com isso, Berenice se assustou e parou em choque olhando para o pai.
Allan respirou fundo fazendo um grande esforço para acalmar seus ânimos.
─ O rapaz ainda não tem idade adulta para desposá-la, mas é filho de um rico Corsário que trabalha junto com a Irmandade Azul, contra a Aliança das Marés. ─ ele observou a filha e viu que ela esperava mais informações ─ Não posso dizer que morro de amores, mas o pai dele é um herói nacional. O próprio Rei Hermus III já o mencionou em banquetes para lhe ofertar menções honrosas e prêmios pelo excelente serviço... Mas o desgraçado não abandona o trabalho nem mesmo para ser reconhecido por Sua Majestade.
Berenice ainda olhava para o pai com o rosto quase retorcido.
─ De qualquer forma, como eu disse... O garoto ainda é novo! Ele tem aulas com mestre Edwinn assim como você, e, segundo seu professor, ele tem uma excelente cabeça para cálculos e para resolver problemas... Além de ter herdado o espírito de liderança do pai.
Berenice ia começar a questionar tudo aquilo, mas sabia que era um tempo e esforço desperdiçados. Conde Allan nunca levava seus desejos em consideração. Fez uma reverencia polida, virou-se de costas e saiu do gabinete.
Allan ficou observando sua filha sair pela porta com o coração apertado. Sabia que havia quebrado a promessa que fizera a Condessa Arriza de deixar a própria filha escolher seu marido dentre os rapazes da corte. Mas, dentre todos eles, o filho de Sir Charles era de fato a melhor opção. Além de ter muitas aptidões o rapaz ainda herdara a beleza da mãe e o ímpeto do pai. Certamente em breve, quando se conhecessem, iriam dar-se muito bem. Allan voltou sua atenção para a mesa e viu que seu excesso socando-a deixara uma marca funda de seu punho no tampo.

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