O Mercado dos Trapos, localizado precisamente no coração da periferia de Acanan, a Cidadela dos Ratos é o pior local onde uma pessoa de bem poderia se aproximar. Conde Allan sempre preocupado com a urbanização e a praticidade militar dentro das partes mais nobres da cidade fortaleza acabou por, de certa forma, negligenciar a periferia. Tornando-a assim, berço para tipos indesejáveis e contrabandistas.
Assim, raramente algum tipo de guarda passava por ali, a menos é claro que estivessem em busca de algum criminoso.
Becos estreitos, ruas lamacentas e mal cheirosas.
Era bem comum uma pessoa desatenta esquivar de uma poça de lama para em seguida chafurdar seus pés em algum amontoado de excremento.
E era nesse tipo de ambiente, não vigiado por autoridades e de certa forma caótico que a jovem A'zarrel estabeleceu sua existência. Encontrou escombros de uma velha torre onde se alimentou dos mendigos que ali estavam ficando assim com o lugar para si e os ratos que por mais que tentasse se livrar pareciam multiplicar-se.
Ela saía durante as noites, procurava algum tipo de alvo que valesse a pena e os drenava de formas criativas. Sua imaginação parecia não ter fim. Mas a parte que mais gostava eram as caras de pavor de seus "gados", como ela os chamava, no momento final.
Quando via que estavam a ponto de entrar em êxtase e ejacular, ela liberava sua verdadeira aparência demoníaca. Causando uma mistura de prazer com pânico. Segundo ela, o "sabor" ficava mais intenso.
Naquela noite ela estava "esfomeada", se assim poderia ser descrito, sua púbis estava formigando, e, uma sensação que parecia um redemoinho inquietava seu ventre, subindo pelo abdome e causando um comichão na garganta. Logo se sentiu úmida e saiu às pressas da antiga torre.A taverna "Ciclope Caolho", visitada por todos os tipos de pessoas de má índole, estava em pleno funcionamento àquela hora da noite.
A'zarrel espreitava das sombras do beco, como de costume, esperando uma vítima descente com a qual pudesse ter uma refeição.
Algumas horas se passaram, e a porta se abriu, iluminando a rua enlameada com a luz das velas e lamparinas no interior da construção.
Um homem bem vestido usando uma blusa de mangas longas, um colete de camurça negra por cima com detalhes floreados em dourado e uma espada fina à cintura; cabelos bem alinhados e sem barba, apenas um bigode fino e bem cuidado, saiu trôpego fazendo acenos de despedida para os amigos lá dentro.
A'zarrel o avaliou e apesar de estar bêbado, parecia ser o tipo de refeição descente que ela gostava.
"─ Que bom que já está se despedindo..." ─ pensou ela com sarcasmo.
O homem seguia pela rua com passos vacilantes entre uma poça e outra. A'zarrel vinha a uma distância segura tomando o devido cuidado para não ser notada. Seus olhos afiados não descolavam de sua presa.
Perto de um beco, ele pareceu hesitar um pouco, curvar sobre o abdome com as mãos sobre a boca como se estivesse a ponto de regurgitar tudo que havia bebido a pouco.
Correu para dentro do beco saindo do campo de visão de A'zarrel.
Ela se precipitou para a entrada do que na verdade era uma viela, e viu seu jantar de joelhos no chão, como quem quase coloca suas vísceras para fora.
De forma silenciosa ela cobriu a distância que os separava e esticou suas mãos para o pescoço desprotegido do incauto que sofria do excesso de álcool.
Mas, para sua surpresa e consternação, suas mãos passaram direto por ele e a imagem do homem a sua frente se desfez. Com o canto direito dos olhos ela percebeu um brilho leitoso, mas foi lenta demais para reagir e quando se deu conta uma lâmina afiada estava encostada em seu pescoço.
─ O quê pensa que iria fazer comigo, senhorita? ─ uma voz masculina, forte e completamente sóbria indagou em seu ouvido.
A'zarrel rapidamente tentou apelar para a sua sensualidade, dando um passo para trás, encostando suas nádegas na altura da cintura do homem.
─ Oh... Eu apenas vi que alguém estava passando mal e quis prestar ajuda. ─ sua voz era claramente submissa. Uma mistura de fragilidade e lascívia que deixava qualquer homem maluco em poucos segundos.
Ela percebeu uma hesitação na mão que segurava a lâmina em seu pescoço, aproveitou dessa oportunidade para esquivar-se e sair dali, empurrando o homem mais para trás com um movimento de quadril. Mas quando correu para a esquerda uma ponta fina de sabre estava direcionada para o meio de seus olhos. Imaginou estar cercada, mas só havia ela e o homem ali. Projetou suas unhas muito afiadas para fora e tentou desferir um golpe, mas foi logo interrompida, pois ele pareceu surgir logo atrás dela.
Os olhos de A'zarrel faiscaram em azul e logo ela liberou sua aparência de succubus.
─ Muito mais bela do que geralmente se apresenta, minha querida... ─ comentou ele como um gracejo.
Ela estava se sentindo acuada, a pressão da presença dele era quase sufocante. Podia sentir sua vida em perigo apenas por estar perto daquele homem. Olhava em volta buscando uma forma de distraí-lo e fugir, quando, para sua surpresa, ele embainhou novamente a espada e deu um passo para o lado.
Ela o fitou desconfiada.
─ Não pretendo lhe fazer mal... ─ disse ele indicando a saída da viela. Ela ainda o observou por um momento e começou a caminhar para a rua iluminada por tochas ─ Se quiser continuar se "alimentando" de mendigos mal lavados, pode voltar para a torre da Cidadela dos Ratos.
Ela havia passado por ele quando ouviu essa ultima parte e parou o encarando com um olhar de raiva.
"Como esse maldito pode saber onde moro?" ─ pensou consigo mesma.
─ Já faz um tempo que venho observando seu trabalho. É um tanto curioso, mas admito que seja efetivo.
A'zarrel agora estava furiosa e confusa. Como era possível que alguém a tivesse observado sem que ela se desse por conta.
Ela foi na direção dele com um olhar de ódio estampado em sua face demoníaca, suas garras se projetaram novamente nas extremidades de seus dedos, e desferiu um golpe no pescoço do homem. Novamente suas mãos cortaram apenas o ar, pois agora ele estava atrás dela com a ponta da espada em sua nuca.
Nesse mesmo instante ela curvou seu corpo para frente, projetando seu pé esquerdo na direção dele.
Rápido, tal como um raio, ele esquivou seu rosto e segurou o tornozelo dela ainda no ar.
A'zarrel ficou pateticamente sacolejando seu corpo na tentativa de desvencilhar-se do agarrão.
─ Isso está ficando cansativo, minha querida! ─ ele soltou-a no chão com certo desdém.
Ela estava furiosa, mas aceitou que estava derrotada por aquele tipo irritante.
─ Já basta! ─ disse erguendo-se do chão, limpando a sujeira de suas roupas e tentando resgatar o mínimo de dignidade. ─ O quê quer comigo?
─ Oh! Agora estamos falando na mesma língua... Muito bem! Senhorita A'zarrel... Certo? ─ ele não esperou ela responder. ─ Meu nome é Andorius Goliarth, ao seu inteiro dispor!
Ele fez uma reverência tão exagerada que deixou sua nuca totalmente desprotegida diante dela. A'zarrel cogitou fazer uma investida ali e acabar com aquele pomposo prepotente, mas sabia, dado as habilidades mostradas, que provavelmente ele estava pronto para isso.
─ Deixe de rodeios e diga! Por que está me espionando?
─ Muito bem, sem rodeios então... ─ ele tomou fôlego e depois sorriu para ela ─ Quero lhe contratar como minha assistente e assassina.
Aquilo foi realmente inesperado. Tanto que ela ficou uns segundos sem saber como responder.
─ Quem você quer matar? E, por que acha que eu faria algo para você?
─ Eu não quero matar ninguém... Meus clientes sim! E, você não vai fazer por mim. Vai fazer pelo trabalho, e claro, pela sua diversão também. ─ ele deu uma piscadinha para ela.
─ Estou muito bem como estou! Tenho tudo que preciso.
─ Oh, sim! Claro! Você tem tudo aos seus pés! ─ ele riu ─ Seja honesta consigo mesma, menina! É óbvio que você tem talento, caso contrário, não teria me interessado por você, mas ainda lhe falta refino nas suas habilidades. Tudo que você tem na verdade é instinto predatório e algumas artimanhas de herança que facilitam sua vida... Mas, hora ou outra vai encontrar alguém que seja mais forte e mais habilidoso que você. Então, o quê vai fazer? ─ essa ultima parte estava claro que ele se referia a si mesmo.
─ Vou dar meu jeito! Sempre foi assim e ainda estou bem!
─ Eu poderia tê-la eliminado quando chegou ao beco, do outro lado da rua da taverna. Eu estava sentado sobre um dos barris "limpando as minhas unhas" e você não me percebeu.
Ela o fitou com os olhos semi cerrados, tentando ver se era um blefe. Mas, ao que parece ele estava sendo sincero.
─ Bom, caso queira deixar essa vida de se alimentar de indivíduos de higiene duvidosa, pode me procurar na Rua do Farol, perto da Praia dos Destroços, número 15.
A'zarrel tentou mostrar desinteresse, mas em seu íntimo, agora surgia certa curiosidade sobre aquele homem.Dois dias depois, A'zarrel batia à porta de um pequeno chalé de inverno feito com toras de pinheiro, argamassa e pedras de rio. Da chaminé saía uma fumaça preguiçosa e nas janelas podiam-se ver cortinas coloridas através dos vidros muito bem limpos.
─ Boa tarde, minha querida! ─ respondeu Andorius abrindo a porta e ainda batendo a massa de algo que parecia ser uma mistura para bolo em uma travessa de metal. Por cima de sua roupa estava um avental branco como os usados por taverneiros.
─ Você está... cozinhando? ─ indagou ela meio incrédula.
─ Sim! Eu também preciso me alimentar. ─ ele deu um sorriso que pareceu um pouco com deboche. ─ Na verdade estava lhe esperando chegar um pouco mais tarde. Mas, já que está aqui, entre! Vamos comer, e depois falar do seu novo emprego.
A'zarrel entrou com a porta se fechando suavemente atrás de si.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Scaleth & Cia
AdventureDevido à acontecimentos fora de seu controle, antes mesmo de nascer, Joshua Drake, filho do incomparável Capitão Corsário Sir Charles Drake, é envolvido em uma trama na qual se vê obrigado a abandonar a honradez e abraçar uma vida de pirata fanfarã...