Capítulo 15(Há Quinze Anos)

17 5 2
                                    

Henry Kidd tinha seus olhos colados no horizonte, suas mãos calosas estavam atadas às malaguetas do timão do Jóia da Rainha como se tivesse passado piche ou alguma outra substância pegajosa. As velas estavam infladas com o vento forte que vinha do continente para o mar aberto. Sua intenção era apenas uma! Achar a Ilha do Devaneio.
Uma ilha flutuante que se movia pelo oceano seguindo correntes marítimas. Era absurdamente difícil de encontrar, e aqueles que uma vez nela estiveram voltavam contando histórias absolutamente impossíveis. Tesouros de valor incalculável, criaturas gigantescas, uma fonte de mana ao bel dispor de quem quisesse tomar posse. Bastava ter um coração puro, segundo as lendas, para ser aceito no lugar.
As ondas se agigantavam no costado de estibordo enquanto o navio cortava o mar impulsionado pelo vento nas velas. Seguindo o curso caótico tirado de uma carta náutica sem registro; coordenadas que pareciam cruzar varias vezes pelo mesmo lugar no oceano. Não havia como confiar naquilo, contudo, o Capitão Kidd seguia convicto de que logo teria seu prêmio.
─ Capitão, temos informações de que o Interceptor está em nosso encalço!
Henry Kidd não desgrudou seus olhos do curso que seguia; por alguns segundos pareceu que nem mesmo havia ouvido Edgard, seu imediato, falando.
─ Quanto tempo? ─ indagou com sua voz áspera que parecia areia e cacos de vidro raspando.
─ Um dia e meio, senhor! Na melhor das hipóteses, dois dias! Aquele navio é rápido como o Diabo!
O capitão ainda ficou alguns minutos, que pareceram uma eternidade, pensativo.
─ Me mantenha informado!
Kidd sabia que se Charles o encontrasse estaria em maus lençóis. Mas ele estava a duas semanas seguindo aquele complicado curso. Se o abandonasse agora para fugir do capitão corsário, todo o trabalho estaria perdido.
Edgard saiu rapidamente de perto do capitão e mandou um dos garotos que cuidava dos corvos soltar a ave que havia chegado com a informação levando uma nova mensagem.
Geralmente os piratas seguiam livres matando, pilhando e atacando quem quer que surgisse em sua frente no mar. Mas, aparentemente, Henry Kidd havia conseguido unificar todas as bandeiras negras sob uma única égide, a Aliança das Marés.
Desta forma ele podia receber ajuda se necessário e manter uma rede de informação nos mares.

Enquanto isso há algumas muitas milhas de distância, o Interceptor recolhia suas velas e fazia uma parada total em meio ao oceano. Uma mulher furiosa esbravejava com seu marido/capitão por perder uma oportunidade de ouro. E sem saber que aquela decisão teria um custo incalculável, o Capitão Charles Drake fazia seu galeão retornar ao continente para deixar sua esposa e seu futuro filho em segurança.

Não demorou muito e o céu se fechou, nuvens escuras cobriram o brilho do sol. As ondas ficaram maiores, quebrando sobre o costado e espalhando-se pelo tombadilho. O Jóia da Rainha sacolejava de um bordo para o outro oscilando perigosamente. Marujos eram arrastados pelo convés com a força das ondas.
Em situações como essa, o correto a se fazer era seguir em direção as maiores ondas para que o navio, usando a força do vento impulsionando-o para frente, pudesse atravessar as paredes de água que subiam vários metros acima do convés.
Os marujos estavam em uma situação completamente aterradora, sabiam que a qualquer momento o navio poderia virar e assim, todos iriam sucumbir no mar tempestuoso.
Os relâmpagos e trovoadas ribombavam pelo céu escuro, enquanto os homens gritavam pelo convés.
Henry Kidd se mostrava alheio ao desespero geral em seu navio, seguindo o curso caótico à sua frente. Edgard mantinha seus olhos na retaguarda. Estava amarrado por um cabo flexível à amurada do castelo de popa. O próprio capitão o havia prendido ali para que o avisasse se Charles surgisse em seu rastro.
─ Estamos quase lá seus malditos maricas! Estão com medo de uma tempestade? ─ o capitão esbravejava com os homens que tentavam se manter presos aos costados, com a força das ondas forçando-os ao mar. ─ Estou cercado de idiotas de meia perna!
A terrível força dos ventos, os raios caindo no mar próximo demais do navio e as ondas impiedosas formavam um quadro de terror aos olhos dos espectadores impotentes.
Um dos marujos mais fortes soltou de onde estava e seguiu em direção ao capitão. Iria apagá-lo, prende-lo e tomar o controle do timão.
Trôpego, correu segurando-se pelo costado, alcançou as escadas e subiu galgando os degraus quase que engatinhando enquanto o navio balançava.
Ele ficou de pé por trás de Henry Kidd, puxou sua espada da bainha em sua cintura e a apontou para as costas do capitão.
─ Capitão Kidd, em nome do bem da tripulação eu estou tomando o navi...
Antes que o homem pudesse terminar de falar, Henry Kidd girou sobre uma perna acertando a lateral das costelas do marujo, bem na hora em que o navio adernou para bombordo.
O impacto foi tão forte, que o homem viu seus pés perdendo a estabilidade das tábuas do convés, e como se pudesse ficar à parte da gravidade ele subiu alguns centímetros no ar, indo se chocar contra a amurada do castelo de popa, dobrando sobre ela e caindo ao mar em seguida.
Ainda sem fôlego ele conseguiu nadar até a superfície e assim que colocou seu rosto para fora da água salgada um raio o atingiu, carbonizando seu corpo instantaneamente.
─ Mais algum dos malditos cães pretende se amotinar? Ha! ─ gritou Henry Kidd de onde estava ainda segurando as malaguetas do timão.
Não havia mais esperança. Todos sabiam que iriam morrer naquela tempestade. O capitão não era alguém que eles poderiam simplesmente enfrentar, e se ele havia decidido morrer, o destino de todos eles estava selado.
Mas, cerca de uma hora depois, ainda seguindo o curso, as ondas começaram a diminuir e o céu a arrefecer. Como se fosse magia, o sol voltou a brilhar e uma grande calmaria surgiu. Apenas uma brisa suave soprava, mal inflando as velas molhadas. Agora era possível ver o estrago feito. Várias tábuas haviam se soltado do casco, muita água havia entrado no porão do navio e entre os homens; cerca de 90% da tripulação estava levemente ferida, 6% estava com ossos quebrados e 4% (cerca de oito homens) haviam desaparecido.
─ Vejam, seus desgraçados! O capitão Kidd os deu o prazer de ver com seus próprios olhos podres a Ilha do Devaneio!
Era verdade. Uma ilha paradisíaca flutuando no meio do oceano, cercada por uma barreira de mal tempo. Por isso era tão difícil de encontrá-la. Ninguém em sã consciência iria navegar para aquela tormenta.
De vegetação densa, a ilha tinha cerca de 9km² e um grande morro que se assemelhava a um vulcão. Rodeando a ilha, era possível localizar uma pequena baía onde caberiam um ou dois barcos.
─ Para a Ilha, seus desgraçados! Andem! Há!
Os marujos, mesmo doloridos, começaram a se mover. Era melhor acatar as ordens do que arriscar despertar a ira do Capitão Kidd.
Logo, Henry Kidd, Edgard e mais 20 marujos desceram na areia da baía. Foi necessário colocar estacas para amarrar o Jóia da Rainha, afinal a ilha flutuava pelo mar, e isso tornava impraticável apenas jogar a âncora nas proximidades.
Usando suas espadas e facões abriram caminho pela vegetação densa, cortando galhos e cipós que surgiam em seu caminho.
Várias horas haviam se passado até que, enfim, conseguiram chegar ao sopé do morro.
Henry Kidd trazia consigo a carta náutica, olhando as coordenadas a todo instante, procurando os pontos de referência.
Aparentemente o capitão rodava de um lugar para o outro, passando por caminhos cruzados tal como no mar. Os marujos tinham receio de comentar qualquer coisa, pois Henry Kidd parecia tenso e isso geralmente era indicação de mau humor, e conseqüentemente alguém teria uma perna ou braço contundidos ou até mesmo quebrados.
Depois de vários e intermináveis minutos rodando pelas pedras e pela vegetação, o Capitão deu dois passos mais para perto do morro e então ele viu.
Uma fenda entre as rochas se alargava depois da passagem estreita, revelando ali uma porta de pedra esculpida nas rochas do morro.
─ Encontramos... Ha!

Apenas Edgard foi acompanhando Henry Kidd quando este conseguiu abrir a porta de pedra.
Ambos ficaram por várias horas no interior do morro. Quando retornaram já estava escuro e os homens estavam montando acampamento; o Capitão trazia um tomo volumoso enrolado em sua casaca e o Imediato parecia visivelmente transtornado.
Um dos marujos se adiantou para oferecer ajuda ao capitão, mas este o fuzilou com os olhos. A reação foi totalmente espontânea. Ao ver os olhos do capitão cintilando em fúria, o marujo se encolheu a tempo de levar uma forte bordoada e ser jogado contra o tronco de uma árvore próxima.
Os demais deram algumas risadas da desgraça do camarada, mas logo foram abafadas pelo olhar do capitão Kidd.
Ao que tudo indicava, Henry Kidd estava extremamente possessivo com relação ao tomo em seus braços.
Passaram a noite acampados no sopé do morro, mas o capitão não fechou os olhos nem por um minuto sequer durante a noite. Arriscou-se a dar uma folheada nas páginas tão somente quando todos os marujos estavam realmente dormindo.
O volume era feito a mão, com capa de couro reptiliano, um fecho feito de cobre e páginas de pergaminho muito antigas, costuradas umas às outras. Os textos, apesar de serem em algum tipo de alfabeto desconhecido, tinha algum tipo de magia que se fazia entender por quem quer que o tentasse ler.
Na manhã seguinte, todos voltaram para o Jóia da Rainha. Boa parte dos reparos já havia sido feitos, a água foi drenada para fora através de baldes e o restante da tripulação estava ocupada com os demais preparativos no convés.
Um dos timoneiros que estava encarregado de coordenar os marujos em seus afazeres se adiantou para Edgard.
─ Senhor, estamos quase prontos para partir!
O imediato estava ansioso por partir daquela maldita ilha, mas sabia em seu íntimo que nada seria como ele esperava. Tudo que viu, ou pelo menos pensou ter visto, no interior da caverna havia mexido com sua cabeça. Sabia que algo terrivelmente maligno havia se apossado de seu capitão. Não que Henry Kidd já não fosse um homem mau e sanguinário, mas, aquilo que estava no interior da caverna era ancestral, maligno até a ultima fibra.
─ Irei avisar ao capitão... ─ respondeu o imediato estremecendo.
Henry Kidd estava sentado à beira da orla, sobre um tronco de coqueiro caído e já apodrecendo com a umidade e o sol constante, observando a capa do livro em seu colo. Edgard se aproximou até uma distância segura e viu quando a capa reluziu um brilho esverdeado ao refletir a luz do sol. Antes que pudesse balbuciar qualquer coisa, o capitão virou-se de súbito observando o imediato com desconfiança.
─ O que quer Verme? ─ indagou ele de forma calma, mas sem baixar a guarda.
─ Capitão, apenas informando que já estamos quase prontos para zarpar...
Henry Kidd respirou fundo, olhando ao redor da ilha.
─ Zarpar? Ha! ─ ele tinha um sorriso malicioso nos lábios ─ Quem disse que iremos zarpar?
Edgard sentiu um frio em sua espinha.

Assim, Henry Kidd e sua tripulação tomaram posse da Ilha do Devaneio, fazendo dela sua base permanente.

Scaleth & CiaOnde histórias criam vida. Descubra agora