Capítulo 20 (Fox)

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Logo após a tempestade que açoitou a Baía dos Afogados, Sullivan começou a se sentir um tanto quanto enfraquecido. Sair da cama pelas manhãs se tornou cada vez mais difícil. Logo uma tosse constante e seca tomou conta de todas as horas do dia e da noite do rechonchudo cozinheiro.
Magnólia demonstrou preocupação com seu pai, afinal, ele tinha uma saúde invejável e ela não se lembrava de jamais tê-lo visto sequer espirrando.
Certa noite ela escutou a voz rouca de Sullivan em seu quarto. Levantou-se de sua cama e caminhou trôpega pelo corredor. A voz de Sullivan era fraca, entrecortada por acessos de tosse, mas era constante. Quando chegou mais perto, ela começou a entender algumas palavras. Ele parecia estar falando de Frank.
─ Pai? ─ disse ela colocando sua cabeça e a cabeleira ruiva para dentro do aposento.
Sullivan não a respondeu. Estava deitado, de olhos fechados e balbuciando.
Ela abriu mais a porta, apoiou o candelabro com a vela no aparador e foi até a cama de seu pai.
─ Papai?! ─ ele não a respondeu e continuou balbuciando. ─ Pai!!!
Magnólia colocou sua mão sobre a testa de Sullivan e percebeu que ele ardia em febre.
Alarmada, ela correu até a cozinha da taverna que era conjugada com o restante da casa e pegou uma jarra com água fresca e um pano de prato, na mesma velocidade voltou ao quarto do pai. Molhou bem o pano e o colocou ainda pingando sobre a testa de Sullivan.
─ Pai!!! Papai!!! Por favor, me responde! ─ lágrimas começaram a escorrer pelos olhos de Magnólia.
As horas foram passando enquanto ela continuava trocando as compressas de água fria; aos poucos a febre de Sullivan foi baixando e ele foi se acalmando.
─ Frank... meu filho... ─ Sullivan tinha a voz um pouco mais compreensível agora, apesar de ainda estar delirando. Magnólia pegou em sua mão para confortá-lo ─ Você é o homem da casa... Precisa tomar... conta da Meg... quando eu estiver ocupado... Deus sabe quem... a colocou em nossa porta... Ela é preciosa demais para nós... e tenho certeza que fará grandes coisas! Vocês precisam ficar sempre... juntos. ─ um ataque de tosse tomou conta dele.
Magnólia tinha já seu rosto lavado em lágrimas e ao ouvir aquelas palavras, chorou ainda mais. Depois sentiu muita raiva por seu irmão não estar ali, quando seu pai mais precisa dele.
Alguns dias passaram sem que a situação de Sullivan melhorasse. Logo os recursos foram acabando, e durante esse tempo a taverna O Búfalo Bêbado permaneceu fechada.
Certa tarde Magnólia deparou-se com apenas algumas cenouras murchas e batatas apodrecidas na despensa e seu sangue gelou. Engolindo o orgulho, ela calçou seus sapatos, colocou sua capa sobre os ombros e saiu porta à fora.
Caminhou alguns metros para longe da taverna, seguindo pela Rua dos Afogados até uma casa feita de madeira, com uma varandinha enfeitada com vasos de plantas e uma porta que um dia foi amarela, mas que agora estava semi-descascada.
Reuniu coragem, respirou fundo algumas vezes e levantou o punho...
Ela hesitou. Por toda a sua vida, aprendera com seu pai a ganhar o próprio dinheiro com o suor do seu trabalho. O único problema, é que ela sempre gastou tudo que ganhava. Nunca imaginou que poderia precisar guardar dinheiro.
Agora se via em uma situação completamente inusitada. Dependendo da caridade de outros para passar por esse período conturbado de sua vida.
Ela ergueu o punho mais uma vez e socou a madeira da porta. Alguns pedaços de casca amarela caíram ao chão.
Segundos depois uma mulher de cabelos desgrenhados, olhos remelentos e dentes amarelados veio atender.
─ O quê você quer?
─ Bo... boa tarde, senhora! ─ começou Magnólia. ─ Eu sou filha do taverneiro Sullivan...
─ Não tenho interesse, seja lá o que estiver vendendo!
A mulher simplesmente bateu com a porta, deixando Magnólia ainda de boca levemente aberta, olhando mais cascas de tinta amarela caindo ao chão.
A menina ficou confusa e pensou em retornar para sua casa, mas a memória de seu pai febril e sem alimento a deixou preocupada.
Levantou novamente o punho e bateu à porta, dessa vez com mais delicadeza.
─ Você de novo? ─ indagou a mulher ao atender novamente a porta ─ Não quero comprar nada, menina!
─ Por favor, espere! Não estou vendendo nada! ─ apressou-se em dizer antes que a mulher fechasse a porta novamente. ─ Meu pai está muito doente... e... não temos dinheiro nenhum. Nem mesmo para nos alimentar... A senhora poderia nos ajudar de alguma forma?
A mulher olhou para o rosto bonito e corpo bem feito de Magnólia, riu com escárnio e depois cuspiu no chão.
─ É ainda pior que estar vendendo algo! Está pedindo esmolas! Vá trabalhar sua preguiçosa!
Dessa vez a mulher bateu a porta com violência, e até mesmo a poeira acumulada nas reentrâncias das tábuas caíram junto com a chuva de cascas de tinta.
A menina ficou atônita por alguns segundos, tentando assimilar e entender o que havia acontecido. Seus olhos começaram a arder e logo seu rosto ficou lavado de lágrimas.
Sentindo-se humilhada ela caminhou até um canto da rua onde respirou fundo por alguns minutos. Depois ela limpou o rosto com o forro da capa e continuou seguindo de casa em casa pedindo ajuda aos vizinhos da taverna. Pessoas que ela conhecia desde a infância. Mais ninguém a destratou como a primeira vizinha, mas também alegaram que não tinham como ajudar.
Ao fim da tarde, Magnólia estava sentada no degrau de entrada da taverna quando viu a carroça do verdureiro passando. Gleder estava sentado na parte posterior com caixotes e sacas se amontoando ao seu lado no veículo puxado por dois pôneis, cabisbaixo, enquanto seu pai ia à frente conduzindo os animais pelas rédeas.
Pararam diante de uma casa da rua. Uma senhora vestida com roupas cor de mostarda e lenço veio até a carroça. Parecia interessada em pechinchar as verduras e os legumes.
Aquilo fazia parte da rotina de todos os dias. Rodar toda cidade recusando trocas, ouvindo pechinchas, zombarias sobre o tamanho de alguns legumes e algumas vezes impropérios. O jovem Gleder só queria ter um pouco mais de coragem para tentar mudar sua vida. "Talvez conseguir se casar com a filha de algum dono de sítio ou de fazenda para cuidar de animais. Segundo se sabia a vida de pastores era muito mais agitada que aquela monotonia de plantar, colher e vender verduras"...
Tais pensamentos povoavam sua atenção quando uma cabeleira ruiva e olhos verdes muito inchados, talvez por chorar, o despertaram do devaneio.
─ Senhorita Magnólia... ─ disse baixinho olhando para a menina de longe ─ Senhorita Magnólia! ─ disse agora mais alto enquanto acenava com o braço para ela e um sorriso alegre surgia em seu rosto.
Magnólia ouviu o rapaz chamar seu nome, mas estava meio sem paciência para as trapalhadas de Gleder naquele momento.
Ele viu que seu pai levaria algum tempo conversando com a cliente do lenço e saltou da carroça para o chão e foi até a bela filha do taverneiro.
─ Boa tarde, senhorita! ─ disse ele se aproximando.
Tomando cuidado para o rapaz não perceber a sua falta de paciência naquele momento, ela respirou fundo e foi soltando o ar devagarzinho.
─ Olá, Gleder... Boa tarde para você.
─ Sim, sim, sim! Boa tarde... É... como a senhorita tem passado? ─ ele se atrapalhou um pouco ─ Digo, já tem alguns dias que vemos a taverna fechada. Estão tirando uma folga?
Magnólia só queria que ele se calasse, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, seus olhos arderam novamente e logo as lágrimas correram para seu queixo. Gleder ficou aturdido, sem entender o porquê a moça de seus melhores sonhos estava chorando daquele jeito.
─ Senhorita... foi algo que eu disse? Por favor, me perdoe!
Magnólia chorou um pouco mais até conseguir se controlar e desenrolar o nó em sua garganta.
─ Não, Gleder... Não é sua culpa! ─ ela secou seu rosto no tecido do próprio vestido enquanto tentava controlar a voz ─ Meu paizinho... está doente.
─ Por todos os Deuses! O senhor Sullivan? Como isso ocorreu, Senhorita? Tem algo que eu possa fazer?
Magnólia temia que a conversa chegasse até ali. Sabia bem quais eram as reais intenções de Gleder por trás de todo aquele cavalheirismo com ela.
No máximo o via como um bom amigo, e não queria tirar proveito dos sentimentos do rapaz para benefício próprio ou de seu pai.
─ Não... Estamos bem, Gleder... Só estou preocupada! De verdade!
O rapaz a fitou por alguns segundos, sustentando o olhar dela que logo se desviou.
Sem dizer nenhuma palavra ele foi até a carroça, depois voltou com um caixote com cenouras, rabanetes, batatas, gengibre e alguns outros legumes e raízes.
─ Olha... não posso fazer muito, mas se quiser pode ficar com essa caixa. São peças que ninguém quis comprar só por que estão um pouco machucadas. Entende? Estão perfeitas para o consumo, só a aparência está feia...
Magnólia viu uma caixa cheia de legumes e verduras que ela poderia usar para fazer sopas e se alimentar junto com seu pai enquanto estivesse enfermo. As lágrimas correram por seu rosto novamente e ela deu um salto de alegria abraçando o rapaz diante dela.
─ Não sei como te agradecer, Gleder! Você é incrível! ─ ela apertou o rapaz magricelo num abraço tão forte que ele pode jurar ter pensado que uma costela estalou. ─ Obrigada! Obrigada!
─ Não foi nada demais, Senhorita! Esses itens seriam usados em algum ensopado maluco que minha mãe gosta de inventar... Eu preciso ir... ─ ele estava visivelmente encabulado. Suas maçãs do rosto estavam rubras ─ Melhoras ao seu pai!
Magnólia viu o rapaz subindo na carroça, meio desajeitado, sentindo-se culpada por ter perdido a paciência com a aproximação dele. Agora, com o humor renovado, ela pegou o caixote e entrou.

Scaleth & CiaOnde histórias criam vida. Descubra agora