Capítulo Vinte e dois [Fique]

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— Me dê boas notícias, por favor. — praticamente imploro para Michel enquanto o barulho da cafeteira me distrai. Decidi tomar um café decente hoje. Já faz dois dias que Hilary está em recuperação, apenas dormindo e comendo, sem querer receber visitas. Todos nós temos respeitado o seu espaço, mesmo eu imaginando que eles não saibam que a culpa por ter tido o aborto esteja a consumindo.

No entanto, o que Hilary não sabe é que esse acontecimento tem atingido todos nós. Memórias de um sentimento passado agora nos assombram muito mais.

— Tenho uma boa e uma ruim, qual vai querer primeiro? — ao fundo, consigo escutar o som da impressora mesmo sendo seis horas da manhã de um domingo.

— A boa, pra variar.

— Certo, aqui vai: investiguei as últimas transações financeiras de seu pai, não foi fácil fazer isso sem que ele soubesse mas descobri que um conhecido meu trabalho na área administrativa. Enfim, consegui ter acesso aos relatórios e históricos da folha de pagamento do seu pai, o que eu descobri foi uma grande lavagem de dinheiro que vem sendo feita há um pouco mais de uma década.

Faço uma careta.

— Por que meu pai deixaria algo tão explícito na folha de pagamento? Ele não é burro a esse nível.

— Não foi algo explícito. Os favores feitos não são pagos diretamente. Há uma pessoa que faz isso por ele.

Mudo o celular de orelha, antes de pegar meu café e me arrastar até a mesa retangular do refeitório.

— Quem?

— Nhã... — escuto os estalos de um papel. — Frederico Gonçalves. Faz alguma ideia de quem seja?

— Não, nenhuma. — levo o café aos lábios, sentindo o gosto amargo dele. — Que tipos de favores são feitos?

Michel estala a língua.

— Contrabando e sabotagem. Seu pai tem nas costas o nome de uma das maiores empresas internacionais aéreas, imagina o quanto ele teve que sabotar outras empresas para sair na frente. Não que a Alcance não tenha suporte para ser a melhor, o que eu quero dizer é que ela não tem nada de inovador. Apenas isso.

Michel tinha razão, a companhia aérea do meu pai não tinha muita coisa inovadora, pelo contrário, eram altos os custos para o melhor conforto, no entanto, a classe econômica não era muito valorizada, mas era seguro. A única companhia aérea brasileira que nunca, nenhuma vez, havia caído. Então era uma empresa que as pessoas confiavam. Melhor ter segurança do que conforto, pelo ao menos para a classe econômica. A primeira classe era, sem sombra de dúvidas, a que mais era privilegiada além do normal.

— Bom — retoma ele. —, eu terei que entrar com uma procuração pelo juiz para investigar legalmente.

— E quanto ao homicídio do pai de Kailan? — verifico de que ninguém me ouviu e volto minha atenção para o celular.

— Está em andamento. Como o seu pai não está em condições de responder por si só, isso terá que esperar. No entanto, a boa notícia é que ele irá diretamente para a cadeia após a recuperação. Assim que ele sair do hospital e for para a própria casa, já estará sendo acompanhado por policiais que garantirão que ele não fuja.

— Isso é impressionante. — digo por dizer, mesmo sendo verdade.

— Eu sei, eu fiz um trabalho excelente, pode dizer.

Reviro os olhos e deixo a xícara no balcão antes de voltar ao corredor que leva para o quarto de Hilary.

— Uma vez convencido, sempre convencido.

— Uma vez competente, sempre competente. — ele me corrige. — E quanto a má notícia...

Tinha até mesmo me esquecido que tinha uma má notícia. Suspiro e paro alguns metros da porta do quarto.

— Fala rápido.

— Seu pai será preso pelo crime de homicídio, isso não tem discussão, o vídeo é mais do que esclarecedor. No entanto, quanto as provas de lavagem de dinheiro, há um problema...

— Qual?

— Para que eu possa pôr as minhas mãos nesses documentos, legalmente falando, eu preciso de uma procuração. E isso só quem pode dar é o juiz.

— Certo, e qual o problema?

— Acontece que o juiz está na folha de pagamento também. Ele não deixará que algo com o nome dele seja envolvido em algo desse porte.

A sensação de algo dando certo acabou de ir por água abaixo.

— Não há outro juiz?

— Há sim, mas será um pouco mais complicado que isso. — suspira em frustração, faço o mesmo. — Resolverei isso o quanto antes. Até logo.

— Michel?

— Sim?

— Obrigada por isso, de verdade.

— Pode repetir? Acho que não escutei direito.

Reviro os olhos. Babaca.

— Vá se foder! — e então desligo. Aposto que ele está rindo nesse exato momento. Nunca se pode abaixar a cabeça para alguém que o ego é bastante inflado, mesmo eu tendo que admitir que ele é um ótimo profissional, apesar de ser tão jovem.

Encaro a porta do quarto de Hilary no exato momento que uma enfermeira passa por ela em saída. Ela me olha com curiosidade.

— Como ela está?

— Melhor a cada dia. — responde com a cabeça inclinada ao me olhar de cima a baixo. — O que você é dela?

Minha garganta arranha ao responder:

— Ela é a namorada do meu sobrinho.

A enfermeira de cabelos grisalhos e de baixa estatura murmura um “ah” quase inaudível.

— Uma noite dessas ela chamou por uma mulher, não me lembro exatamente o nome dela... era algo como... como era mesmo, meu Deus, Túlia?

— Não seria Júlia?

— Isso. Júlia! — abre um sorriso. — É você, não é? A menina que ela acha todas as noites.

Ergo uma sobrancelha para o “menina” mas não digo nada em relação a isso.

— Sim, sou eu. A não ser que ela conheça outra Júlia.

A enfermeira ri levemente, fazendo a tensão de todo aquele hospital se esvair. Abro um sorriso pleno. Sua presença é quase maternal.

— Posso entrar para vê-la?

A mulher me olha por alguns segundos, ponderando, até que murmura “que mal tem?” e então chega para o lado para que eu possa entrar.

O quarto é de um branco ofuscante, o jeito de hospital é a única coisa que predomina. Há um arrancho de flores há um metro da cama em que ela está deitada com a cabeça virada para o lado contrário, parece estar dormindo, pelo ao menos é o que eu acho até que lentamente seu rosto se volta para mim e eu fico paralisada. Nada em mim corresponde aos meus comandos no momento que seus olhos opacos e quase semicerrados me encaram. Ela parece demorar um pouco para me reconhecer, no entanto, no momento em que isso acontece... ela simplesmente tenta se sentar, não consegue, sua mão vai para seu útero e ela desaba em um choro impiedoso.

Coloco minhas mãos em seus olhos, forçando-a a me olhar e meus olhos para não chorarem também. Preciso ampará-la mas não consigo ir muito além. Hilary está inconsolável e eu me sinto uma inútil por não ter entrado no quarto dois dias antes, mesmo que sua ordem de afastamento fosse clara.

— Eu sinto muito, Hila. — massageio seus ombros, para que a tensão se esvaia. Ela ergue a cabeça e se joga novamente contra o travesseiro, mal se importando que as lágrimas ainda rolem por seu rosto pálido.

O bebê se foi, e levou uma parte dela consigo.

— Você vai para casa com todos nós. — a informo, torcendo para que isso a chance atenção, mas isso não acontece. Tento novamente. — A enfermeira disse que você vem me chamando todas as noites, quer conversar sobre isso?

Espero alguns segundos, mas nada acontece. Hilary continua encarando a janela do segundo andar do hospital, suas lágrimas já secando.

— Lá em casa tem um jardim como esse, só que maior. Eu acredito que você vá gostar. Vou me certificar para que você fique com o quarto que era meu, ele tem a melhor visão para o jardim.

Silêncio. Engulo em seco, encarando minhas mãos entrelaçadas em frente ao meu quadril. Estou de pé há apenas um metro e meio dela, e ela mal me olha. De alguma forma, não acredito que ela esteja aqui.

— Tá bem, então... — sussurro. — Foi um erro vir aqui sem te avisar, me desculpa.

Viro-me e atravesso o quarto, nervosa, me culpando por ter feito isso, mesmo que não tenha sido nada demais. Eu deveria ter avisado que viria, ou pedido a sua permissão, ou...

Paro onde estou, com a mão na maçaneta. Viro-me para ela e engulo em seco.

— Disse algo?

A sombra de seu olhar caí sobre mim e um arrepio me atravessa. Estou tão gelada que poderia ser confundida com um cadáver facilmente.

— Hilary, você...

— Fique. — pigarreia, sabendo que sua voz está rouca por ter sido pouco usada por dias. — Eu estou sozinha aqui há algum tempo.

— Dois dias. — a informo, me aproximando com cuidado. Parece que até mesmo minha aproximação poderá quebrá-la ao meio.

Nunca a vi tão vulnerável.

— Posso me deitar na cama com você?

Ela pondera, pisca algumas vezes para só então assentir e afastar para o lado para que eu possa me deitar.

Sua pele fria toca a minha, ela tenta disfarçar o arrepio mas eu o percebo. Não vou implicar com ela dessa vez, hoje não.

— Que dia é hoje?

Ela é tão aleatória.

— Nove de junho, por quê?

Me inclino para mais perto dela quando seu semblante é tomado por dor. No entanto, Hilary põe a mão no meu antebraço e encaixa sua cabeça na curva de meu pescoço. Abraça-a do jeito que consigo, tentando aquecê-la de um frio que não tem nada a ver com a temperatura desse quarto de hospital.

— Sei que irá embora no dia onze, seu irmão me contou quando você embarcará.

Não digo nada, mesmo sabendo que isso não vai mais acontecer. Está tudo tão recente e eu não tive um tempo para pensar em como as coisas serão daqui pra frente.

— Fique. — ressoa, agarrando meu antebraço com mais força como se eu pudesse simplesmente evaporar. — Fique, mesmo que eu tenha que brigar com Melissa por você, fique e julgue cada maldita escolha minha mesmo que eu te dê argumentos válidos.

— Hilary... — tento me afastar para olhá-la e dizer que não irei mais, porém ela não deixa. — Hilary, me solte agora. — o tom de ordem faz com que ela o faça. Sento-me de frente para ela na cama e a encaro. — Você nunca foi de fazer questão de alguém.

— Pela primeira vez desde que perdi meu pai, eu acredito que não conseguirei passar por isso sozinha. E eu nem sei se quero.

— E quanto a Kailan?

— Kailan e eu não temos mais nada.

— Está falando sério? — franzo o cenho, descrente.

— Rompi com ele esta manhã. Ele não aceitou bem e foi... — suspira, as lágrimas caindo pelas laterais de seus olhos. — foi isso que me fez perder o bebê.

E o desgraçado ainda se preocupou com o bebê.

— Infeliz. — murmuro baixinho.

— Eu não o veio desde então. — informa, dando de ombros. — E nem sei se quero ver.

— Isso é compreensível. Eu também não iria querer vê-lo tão cedo, eu mal o quero e ele não me fez nada.

Hilary parece relaxar ao encostar no travesseiro. Seu olhar ainda está em mim.

— Para com isso, vai.

— Com isso o quê? — pergunta.

— De me olhar como se eu fosse levantar e ir embora. Esse olhar eu conheço e significa despedida. Não me olhe assim.

— Meio que é uma, não é? — sorri fraco. — Por mais que eu queira que você fique, e acredite em mim, eu quero mais que qualquer coisa, não posso te obrigar a ficar aqui nessa cidade que você odeia com uma família que você odeia mais ainda. — seu olhar perde o foco como se estivesse voltando para algum momento. Espero até que ela retorne. — Tenho que me levantar, e me levantar sozinha... mais uma vez.

Mordo meu lábio inferior antes de levantar da cama apenas para me sentar mais perto dela. O cheiro de sabonete do hospital fica mais forte, no entanto, não consegue sobressair o seu cheiro natural. Senti-o do nada por dias desde aquela vez que eu a encontrei passando um café na casa de Cristina.

Com a mão direita, acaricio seu rosto.

— Vou estar aqui amanhã. E depois de amanhã, e depois de depois de amanhã. — beijo-a levemente, fazendo-a voltar a respirar. — Não vou embora, Hilary. Você vai ter que me aguentar.

Ela ri. Fazendo todo o meu corpo reagir ao som.

— A sua irritante presença é a única coisa que me faz querer continuar. — confessa, e então me beija mais uma vez.

A namorada do meu sobrinho [Enemies to lovers lésbico✓]Onde histórias criam vida. Descubra agora