Capítulo Doze [Súplica]

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Hoje faz doze dias desde a última vez que eu estive com Hilary naquela noite. Ela teve que voltar para casa por uma razão que não ficou muito clara para mim, portanto, faz doze dias que também não nos falamos. Kailan voltou para a escola, isso faz com que eu pouco o veja, pois quando ele volta para casa, meio dia, eu estou saindo para procurar um apartamento para mim ou estou trabalhando no ateliê. Quando chego às 22h00min, ele já está dormindo.

Cristina trabalha em casa, o que significa que quando Kailan não está, fica apenas eu e ela. Pouco nos falamos, porque quando eu acordo, ela já tomou café e já está com a cara no notebook. Eu até prefiro assim. Minha comunicação com minha irmã mais velha sempre foi curta, sempre acabamos julgando uma à outra no fim das contas.

Nunca conseguimos conversar sobre o que aconteceu, até porque eu mal me lembro... eu tinha seis anos e tudo para mim é um borrão de sofrimentos, lágrimas e conflitos. Tenho lembranças de meu pai gritando com ela, dela colocando a mão sobre a barriga... quando eu descobri tudo mais tarde, foi quando eu comecei a odiar meu pai pelas suas decisões... eu nunca consegui o perdoar pelo que ele causou à minha irmã, o que é bastante irônico porque ela o perdoou no fim da contas.

E agora ele quer fazer a mesma coisa com Hilary. Eu não permitirei.

Desde que ela foi embora, eu me questionei se devo contá-la ou não. Ela precisa saber onde está se metendo, sobre os riscos que está correndo. Mas, por outro lado, não sei se isso vai mudar alguma coisa. Preciso fazer isso antes que seja tarde demais.

— Como conseguiu perdoá-lo? — questiono ao encarar minha irmã sobre o notebook. Seus lábios tremem um pouco ao me responder:

— Existem coisas mais importantes do que o perdão, caso você não saiba.

— Como o quê?

Ela corta seu olhar da tela do notebook para mim. Noto algumas rugas ao redor de seus olhos cansados.

— Família.

Reviro os olhos para sua resposta fútil.

— Se eu te desse um tiro você não me denunciaria porque eu sou sua irmã? — quando ela assente, eu murmuro: — Isso é tão idiota.

— Claro que é idiota para você. — fechando o notebook com um baque, ela altera um pouco a voz: — Você nunca se importou com essa família, no fim das contas.

Meus dentes rangem para não perguntá-la onde se importar com a família a levou, invés disso, rebato:

— Eu me importo, sim. — inclino-me para a frente, sobre a mesa. — A diferente que é que eu nunca passaria pano para o que papai fez.

Cristina não reage de imediato, invés disso, olha para o relógio de pulso e bufa.

— Isso não nos levará a nada, nunca nos levou na verdade. — fala, levantando-se da mesa. Faço o mesmo e vou atrás dela.

— Eu sei que no fundo você sabe o quanto aquilo te doeu, quanto olhar para Kailan te faz lembrar dela...

Cristina para onde está e se vira para mim. Seus olhos me fitam com frieza enquanto o músculo de sua bochecha pulsa.

Então, a última coisa que eu esperava que ela fizesse acontece:

— Você tem razão, Júlia. — fala, mesmo com dificuldade.

Pisco lentamente.

— Então por que você deixará Hilary passar pela mesma coisa?

Estamos a um metro e meio uma da outra, paradas na sala, colocando tudo para fora.

— Porque eu não tenho coragem de bater de frente com nosso pai como você tem! — esbraveja de uma vez, respira fundo antes de continuar: — Sentenciei os dois a cometerem o mesmo erro que eu cometi, e isso me dói, pode não aparecer, mas dói.

Engulo o bolo que se forma na minha garganta e seco as lágrimas antes que elas caíam.

— Nosso pai está morrendo.

— Eu sei. Sinceramente, não sei como me sinto em relação a isso. — se sentando no sofá, ela começa a passar as mãos nas pernas, como se quisesse aquece-las. — Você pode achar que eu sou inocente, manipulável, ou o que você quiser acreditar... mas não sou. Ele orquestrou minha vida inteira e eu tive que lidar com todas as situações.

Nunca pensei por esse lado.

— E por que fez isso? Cristina, por que você aguentou?

— Para que não fosse você.

Sinto como se ela tivesse me dado um tapa na cara, e desvio o olhar quando ela continua:

— Para que você pudesse ter uma chance de fugir dessa pressão e desse... joguinho doentio que você bem sabe que nosso pai ama fazer.

Deixo que meus sentidos vagem por alguns minutos. Analiso a situação, e percebo que talvez Cristina tenha suportado isso tudo porque não tinha escolha, não porque ela idolatrava nosso pai e era manipulável. Ela sofreu todos esses anos e eu... eu ainda a critiquei inúmeras vezes por isso.

— Sinto muito. — digo de repente.

— Eu também sinto.

— Não. Não digo em relação ao que você passou, na verdade, sinto muito por isso também, mas eu me referi a forma que eu te tratei por todos esses anos. Eu sempre acreditei que você compactuava com os ideais dele.

— De certa forma, sim. Eu aceitava, portanto, compactuava. Nunca fiz nada para pará-lo. — passa as mãos pelos braços como se sentisse frio. — Mas você pode.

— Eu já tentei, você sabe...

— Júlia — paro de falar com o seu tom de voz alterado. —, se tem alguém que pode impedir que Hilary engravide, esse alguém é você.

Crispo os olhos para ela.

— Como é que é?

— Ora, por favor, vocês são próximas, até mesmo quando estão agindo como duas crianças irritantes. Ela escuta você, então ponha um pouco de juízo na cabeça dela.

Ela não sabe. Por Deus, quase senti meu coração parar com a possibilidade da minha irmã saber.

— Converse com ela, resolva isso. — diz, voltando para a sua postura erétil e orgulhosa. — Faça o que não tenho coragem de fazer... e faça direito.

— Isso não é uma ordem, mas soou como uma, sabia?

Em um lampejo de humanidade, Cristina sorrir.

— Está mais para súplica do que ordem, na verdade.

Minha irmã me dá as costas por alguns segundos, antes que eu possa chamá-la novamente. Nossos olhares se cruzam e, eu percebo, ela sabe exatamente o que eu vou perguntar.

Pigarreio.

— Não que eu me importe, mas eu sempre quis saber: por que você sempre me odiou? Até onde eu me lembre, nunca fiz nada para você.

— Nunca odiei você, eu só... tinha raiva. Só isso.

— Pelo quê? Por eu ser lésbica? Porque se for por causa disso, eu sinto...

— Não. — me interrompe. — Não sou tão fã assim da sua orientação sexual, mas isso não tem nada a ver comigo... Eu tive raiva de você porque você teve escolha de fazer o que quiser com a sua vida, eu não. O que me deixa com raiva é que você largou uma faculdade ótima para ser artista...

— É o que eu amo fazer! — reviro os olhos. — Deixa pra lá, você não entenderia. Nunca entendeu.

— Eu só quero que você seja realista, Júlia. Nós moremos no Brasil! Nem sempre seguir os nossos sonhos nos enche a barriga.

Nesse ponto, ela tem razão, mas eu não a digo isso.

— Mas você não vai me escutar, não é? Nunca precisou de alguém te dizendo o que fazer.

— Então por que você continua tentando mudar isso?

— Porque eu sou a sua irmã e eu nunca soube como ser isso. — confessa a contragosto. — Deveria ter sido eu a pessoa que te tranquilizaria na sua primeira menstruação. Deveria ter sido eu a pessoa que te ensinaria a lição de casa, que te ensinaria a rodar bicicleta, ou até mesmo te defenderia na escola... mas os dez anos de diferença me afastaram de você.

Eu não esperava sentir as lágrimas rolando pelo meu rosto até que eu tivesse que enxugá-las. Cristina não chora mas seu tom de voz demonstra dor.

— Você foi fruto de uma traição, você foi abandonada na nossa porta... e eu tive raiva por isso. Descontei toda a minha frustração em você porque te via como uma intrusa. Quando completei dezesseis anos e tive que passar por tudo aquilo, você tinha apenas seis, era tão nova e ainda assim tão... independente. Nunca brincou com as outras crianças, nunca levou pontos nos joelhos, nada que crianças na sua idade faziam. Então, eu fiz de tudo para te manter longe. Eu fingi que estava feliz com a minha gravidez, fiz tudo isso parecer escolha minha porque não quis que você descobrisse o quão babaca nosso pai era.

— Eu acabei descobrindo do mesmo jeito. E dá pior forma possível.

Cristina sabe que estou falando do amigo de nosso pai. Ela abraça a própria barriga e, enfim, começa a chorar.

— Eu sinto muito, Júlia, sinto muito de verdade.

Não sou de gostar de contato físico, nunca gostei na verdade, mas abraço Cristina fortemente. Deixo que ela chore no meu ombro, deixo que ela seja vulnerável.

— Ainda temos tempo — digo quando ela se acalma. A afasto pelos ombros e digo: —, mas antes eu preciso contar toda a verdade para Hilary. Ela merece saber onde está se metendo.

— Faça isso.

— Você vai ficar bem?

Cristina abana uma mão no ar.

— Eu sempre fico. Pode ir.

Assinto para ela e vou em direção a porta, ainda emotiva com todo o sentimento e confissão que acabou de acontecer. E não sendo o suficiente, quando abro a porta, a primeira pessoa que eu vejo é ele.

Isso antes de ele ir ao chão com a mão na mandíbula e sua boca sangrando. Do outro lado do corredor, se escorando na parede, meu pai me encara após levar um soco meu.

— Mas que droga...?

— Isso é por mim. — vou até ele com tanta rapidez que ele mal reage quando pego em seu colarinho e lhe dou mais um soco no rosto. — Isso é por Cristina.

Escuto-a gritar meu nome, mas estou ocupada demais destilando socos e mais socos em seu rosto cínico. E então eu o solto no chão, e ainda assim, ele me olha sorrindo.

Crispo os olhos para ele e cerro minhas mãos novamente, querendo o bater mais uma vez. É quando meu olhar segue a direção que esse infeliz está olhando. É quando vejo Kailan olhando para as minhas mãos ensanguentadas, quando seu olhar foca no meu e é quando eu percebo a surpresa e temor.

— Kailan... — suplico, mas suas mãos apertam firmemente as alças da mochila.

— Não, para. — seus pés quase tropeçam um no outro quando eu me aproximo dele. Eu paro e o encaro, arrependida, mas Kailan está nervoso demais para notar.

Então ele vira as costas para mim, tento novamente chamá-lo a atenção, dizer algo — mesmo não sabendo o que — que o faça parar, porém tudo que consigo é um último olhar dele antes que as portas do elevador se fechem.

A namorada do meu sobrinho [Enemies to lovers lésbico✓]Onde histórias criam vida. Descubra agora