Capítulo Dezessete [Mal entendido]

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Tem algo diferente nela além dos olhos cansados e corpo mais magro, mas não sei ao certo o que é. Seus olhos estão em mim, fixos, parecendo canalizar cada detalhezinho que mudou desde que a vi pela última vez, meses atrás. Suas mãos tentam tocar na minha, eu, por impulso, as puxo para longe de seu toque. Isso não parece afetá-la, mas causa um efeito contrário em mim. Passei tento tempo querendo mais do toque dela que o rejeitar agora dói mais do que eu imaginaria.

— Por que essa cafeteria? — ela me pergunta ao levar o café puro (sem açúcar, o único aceitável para ela.) aos lábios. — E, por favor, não me diga que é por causa da atendente.

— Por que não? Isso te causaria ciúmes ou algo do tipo?

— Não, provavelmente não. Você me conhece muito bem para saber que não faço o tipo ciumenta.

É tão irônico que eu tenho que rir, mesmo sentindo o gosto amargo em minha boca.

— Não, Melissa. Eu nunca conheci você de verdade, você sabe disso. — dito isso, mesmo que o intuito não fosse machucá-la, o sorriso some de seu rosto rapidamente. Fungo e me encosto na cadeira. — Gosto daqui porque o silêncio é sempre muito aconchegante, os cheiros também, principalmente pela manhã, e também pelo fato de que, se eu não pagar por um café, eu nunca mais tomarei um na vida.

Melissa assente e deixa que seus ombros relaxem um pouco.

— E quanto a atendente, eu já tentei chamar ela pra sair, mas ela tem namorado e... — “ser amante não faz o meu tipo”, eu completaria, se, por pura ironia, não quisesse alguém comprometido. — Deixa pra lá.

Suas mãos ainda estão sobre o envelope que eu encaro fixamente. No entanto a garçonete chega no exato momento que eu perguntaria o que há lá.

O prato é posto em minha frente e eu quase gemo de satisfação apenas ao sentir o cheiro do brownie, se antes algo não tivesse estalado em minha cabeça e eu não encarasse o prato com tanta fixação.

— O que foi? Brownie não é mais sua sobremesa favorita?

— Não, claro que não. É que aqui eles não fazem brownie... — reviro  os olhos. — O que é um desperdício completo.

— Sim, eu sei. Tive que comprar a bandeja inteira e pedir que eles embalassem para você. — diz, simplesmente. Me entrega um garfo. — Vai, experimenta logo.

Aponto o garfo para ela e crispo meus olhos, tentando soar a mais ameaçadora que eu puder.

— Não tente me conquistar pela barriga.

Ela apoia os cotovelos na mesa, as mãos no queixo enquanto me olha. De repente, todas as cores da sua vida retornando para fazê-la parecer tão resplandecente quanto antes. O que quer que tenha acontecido a ela, nesse exato momento, isso não a atinge mais.

Levo o garfo aos lábios, provando o brownie mais delicioso da minha vida. Por Deus, eles precisam colocar isso no cardápio. Gemo de satisfação enquanto Melissa me olha.

— Isso é tão cômico: uma mulher de um metro e oitenta e três, com esse estilo tão fechado e cabelo curto, simplesmente se derretendo por um brownie qualquer. — inclina a cabeça para o lado de forma tão descontraída que eu mordo meu lábio inferior pensando em como ela pode mentir na minha cara por meses e fingir que estava tudo bem. De repente o gosto do brownie fica amargo em minha boca. Melissa nota minha mudança e pigarreia, deslizando o papel em minha direção. — Vim até aqui para te mostrar isso.

O envelope branco está lacrado e frio em minhas mãos. Eu o abro enquanto a olho, esperando ser qualquer coisa, menos o que eu acabo vendo.

— O que isso significa? — pergunto, mesmo sabendo exatamente o que significa.

— É o papel do meu divórcio. Bom, uma cópia na verdade.

— Isso eu entendi..., mas porque veio até aqui me mostrar isso? — minha postura cede, e ouço minha própria voz começar a falhar.

— Olha a data. — faço isso. — Daniel e eu somos divorciados há três anos, Júlia.

Enterro minhas mãos em meu cabelo.

— Isso não faz sentido. Melissa, eu liguei para ele um dia e você estava rindo no fundo. Você tem uma filha de três anos, por que você esconderia isso de mim?

— Quando você ligou naquela noite, Daniel e eu tínhamos levado a Alice para passar a noite na casa da minha mãe. Ela implorou para que ele ficasse e ele aceitou. Estávamos nos divertindo como amigos, isso é tudo que Daniel significa para mim desde que nos divorciamos.

Então eles já entram divorciados?

— Júlia — ela tenta pegar na minha mão dessa vez e eu permito. —, eu vou te explicar tudo que você quiser saber, apenas me pergunte e eu direi a verdade.

Sinto aquele conforto em segurar a sua mão novamente.

— Por que vocês se divorciaram?

—Daniel e eu nos apaixonamos por pessoas diferentes. Ele pela sua assistente e eu por você. Demoramos meses para resolvermos as coisas por causa da Alice que, sinto em te informar, tem cinco anos e não três.

Pisco inúmeras vezes, usando a respiração para processar tudo. O que eu pensei ser verdade não era, eu concluí o que eu quis e não a perguntei nada.

— Por que demorou para me procurar?

— Primeiro que você me bloqueou em tudo, não tive a chance de te explicar e a nossa última conversa foi um desastre. Demorei muito para descobrir que era você naquela noite, e muito mais para descobrir onde você morava. Rodei essa cidade toda atrás de você, sabia?

— Sinto muito pela gasolina. — comento, fazendo todo o clima tenso se esvair. Faço um carinho em sua mão e a encaro agarrada à minha. — Você tem uma filha, é? Por que nunca me apresentou?

Melissa umedece os lábios.

— Primeiro que eu não sou assumida, apenas Daniel sabe e foi ele que me incentivou a vir até aqui para poder te levar de volta.

Meu sorriso murcha.

— Me levar embora?

— Sim? Vim te levar de volta para Salvador, para podermos voltar de onde paramos antes de todo esse mal entendido.

Abro minha boca para dizer o quanto isso é loucura, porque, tudo bem, uma coisa é termos esclarecido um mal entendido, mas ela talvez tenha cogitado que eu tenho uma vida também? Que talvez eu não queira ir embora?

— Melissa, olha eu fico feliz que tudo isso tenha se revolvido, mas eu...

— Júlia? — nossos olhares são desviados para a voz que nos direciona a pergunta. Vejo, em minha frente, minha madrasta acompanhada de minha irmã e ela que foca seu olhar impassível em Melissa.

— Mãe, oi. — cumprimento Tatiane, ignorando as malditas borboletas.

— Olá? — tradução: quem é ela?

— Essa é a sua mãe? — Melissa sorrir em sua direção, fazendo todas as paredes da cafeteria desabarem. Meu Deus, até mesmo minha irmã fica vidrada ao seu sorriso.

— Essa é Melissa. — ao mencionar seu nome, os olhos de Hilary se desviam para nossas mãos juntas na mesa. E então para mim, que já estava a olhando. Ela tenta, ela realmente tenta fazer com que, ao jogar seus cabelos sobre os ombros e mudar o peso de seu corpo de um pé para o outros faria com que eu não notasse a forma como a sua respiração acelerou, mas eu notei o efeito que aquilo teve nela.

— Bem, é bom finalmente conhecer a mulher encantadora que tirou minha filha de mim. — isso foi um elogio ou um massacre?

— Não foi a minha intenção, mas sim, foi o que eu fiz e não me arrependo.

Minha mãe sorri para ela e para mim, e reconheço aquele olhar. Espera um minuto... ela acha que Melissa e eu ainda estamos juntas.

— Mas que... — “porra”, estou prestes a murmurar.

— Maravilha! Na verdade, nem tanto... saímos para fazermos algumas compras enquanto Nath e Kailan se reviram do avesso para fazer alguma coisa para o jantar de hoje.

— Jantar de hoje? — pergunto mais para Cristina do que para ela.

— Ora sim, é claro que você está com a cabeça nas nuvens ultimamente e não soube que teríamos uma pequena reunião de família hoje. Sua namorada deveria ir.

— Melissa?

Minha mãe revira os olhos para mim.

— Você tem outra namorada por um acaso? — se vira para a loira na minha frente. — Te vejo às oito, minha querida?

NÃO! — Cristina e eu queremos gritar enquanto Hilary parece desinteressada e Melissa, radiante.

— Se a Jú quiser...

Dou um sorriso amarelo. Hilary boceja, fazendo questão de demonstrar o quanto somos desinteressantes para ela.

— Sem querer ser chata... — Hilary começa e tento esconder o calafrio que sinto ao ouvir sua voz pela primeira vez em três semanas, mas ela, como eu, nota. As outras parecem avulsas aos efeitos que causamos uma à outra, mesmo que sem querer. Parece que ela e eu compartilhamos de um fio invisível onde conseguimos notar cada mínimo detalhe que as outras pessoas não conseguem. Isso é tão irritante, é como se eu não conseguisse fugir dela ou voltar a ser apenas eu mesma. —, mas já conseguimos o que viemos comprar, então...

Hilary tenta passar, no entanto, Tatiane acaba a puxando para perto, plantando-a no lugar. Consigo sentir seu ódio emanando em ondas de vibração. É quase cômico ver uma mulher mediana a tirando do sério sem ao menos notar.

— Nos vemos às oito, então. — conclui mamãe.

— Achei que eu precisasse concordar com isso, não? — pergunto sarcástica.

Mamãe me corta:

— Você não precisa concordar com nada. Tente começar com um banho, tudo bem assim? — beija minha testa antes de puxar Hilary pelo braço com Cristina em seu encalço.

— Não quero uma palavra sobre isso. — murmuro para Melissa que tenta não rir.

— Não farei, juro. — diz se levantando. — Te vejo às oito, dorme-suja.

Continuo sentada por pelos ao menos cinco minutos, tentando entender o que acabou de acontecer nos últimos quarenta e cinco minutos. Tivemos uma redenção (que eu ainda tenho perguntas sobre), um convite para voltar a minha antiga vida (que, sejamos sinceros, seria uma ótima oportunidade para mim. Florianópolis não apresenta tantas oportunidades quanto Salvador.), e, por fim, e isso é o mais preocupante: minha mãe acha que Melissa e eu ainda namoramos. Tipo, o quê? Sei que não a tenho informado muito sobre a minha vida, mas... estou ferrada, estou completamente ferrada.

Como eu irei passar duas horas suportando meu pai, tentando não gritar à mesa que Melissa e eu não namoramos mais, fugindo do olhar de Nathan que me fuzilará a noite inteira e, só de pensar nisso me arrepio, como vou manter a presença de Hilary indiferente? Como diabos eu vou ignora-la quando, na verdade, tudo o que eu penso é nela? Ela arruinou todos os âmbitos da minha vida: mental, sentimental, artístico e sexual. Como eu vou lidar com isso? Uma parte de mim grita que isso é minha consequência e eu, como não sou uma pessoa sensata, a calo em minha própria cabeça.

“Vai dar tudo certo”, minto para mim mesma no banho. “Vai dar tudo certo”, minto novamente quando Melissa bate em minha porta, radiante em um terninho bege sobre uma blusinha branca e uma calça destroyed rasgadinha. Sorrio e passo por ela, esperando-a em meu encalço, no entanto ela não vem.

— Algum problema? — me olho de cima a baixo, tendo como primeira análise de defeito eu mesma.

Melissa pisca.

— Não, nenhum. — passando por mim, eu mentalmente confirmo que tem algo errado, mas a questão é: pela primeira vez, eu não me importo.

“Vai dar tudo certo”, repito todo o caminho, no elevador, ao tocar a campainha, ao abraçar minha mãe, ao receber um olhar de Cristina enquanto ela fala com Kailan que, por mais que note minha presença, não se vira para me cumprimentar. “Vai dar tudo certo”, repito e repito enquanto Melissa e mamãe riem de algo no sofá. Nathan me encara e sei que vou ter que me explicar para ele. “Depois”, faço um sinal coma mão para ele que assente e volta a fuzilar Melissa.

“Vai dar tudo certo”, minto para mim mesma pela última vez antes de meus olhos recaírem no tom verde-mar de seu vestido que recai perfeitamente pelos seus ombros, deixando sua clavícula a mostra, em seus olhos da mesma tonalidade do vestido, a maquiagem impecável onde destaca cada movimento de seus olhos sem parecer ridículo. O cabelo está em seus ombros, soltos, apenas com um pouco mais de volume. Os fios alaranjados serpenteando por sua cintura.

Ela para em minha frente e eu estou tonta, imersa naquele verde.

— Você está impecável. — comento apenas para ela, e contra minha vontade. “Vai dar tudo certo”, murmuro para o meu coração, em uma esperança que ele se desacelere.

Hilary olha por cima do meu ombro, onde estou de costas para todos. Com pressa, ela murmura:

— Não vá embora até que possamos conversar.

— De nada pelo elogio. — com um sorriso sarcástico, ergo minha taça com vinho para ela em um brinde imaginário.

Hilary rebateria o meu comentário se uma sombra não passasse por mim e fosse até ela, como uma rocha. Kailan oferece o braço para ela como um príncipe. Reviro os olhos. Patéticos.

— Sua Alteza Real... — me curvo teatralmente, antes de virar a taça de uma só vez ao encarar meu sobrinho.

Seus olhos estão petrificados, não os reconheço mais.

— Vejo que trouxe a sua namorada.

Não sei quem range mais os dentes: eu ou Hilary.

— Se não a visse, seria preocupante. Li uma vez que o cérebro humano está propício a focar no que há de mais belo no ambiente. — isso é mentira, eu acho. Nunca li nada parecido.

— É mesmo? Então por que você está olhando para a minha namorada e não a sua?

A taça em minha mão quase se quebra ao meio antes que Cristina interrompesse nossa conversa, anunciando que nosso pai chegou; a pessoa que faltava. Passo por Kailan e bato meu ombro no dele, como se eu tivesse voltado a te quinze anos ou algo parecido, no entanto, não consegui responder a sua pergunta, porque eu não sei a resposta. Eu não quero aceitar a resposta.

Meu pai vê o movimento e me fuzila com o olhar, como se eu estivesse completamente louca. O que foi? Não posso tocar no seu cristalzinho?

Me sento na mesa, entre Nathan e Melissa. Kailan se senta entre Hilary e Cristina, de frente para mim, sendo que sua namorada fica diretamente de frente para Melissa. Seja lá o sentimento que Hilary tem ao olhar para Melissa, eu não me importo, passei muito tempo sentindo o mesmo em relação a Kailan e isso nunca mudou.

Tati e meu pai se sentam nas pontas e compartilham de um olhar cúmplice que não consigo decodificar. Deve ter sido o vinho. Devo estar delirando.

Os pratos são posto à mesa.

— Eu gostaria de dizer que, por mais que Nathan e eu tivéssemos ficado responsáveis pela comida, Hilary se intrometeu e fez mais comida do que o necessário. Então, se vocês provarem de algum prato excelente, saiba que foi ela quem fez.

A primeira coisa que noto à mesa é o brownie como sobremesa. E eu sei o que isso significa.

Inclino-me para sussurrar no ouvido de meu irmão:

— Por que, de repente, todo mundo começou a querer me conquistar pela barriga?

— É um artifício bem simples, na verdade. — ele responde, colocando a massa de macarrão em seu prato. Ele e eu fazemos cara de nojo ao ver o quão grudento está.

— Sabe sobre o que é esse jantar?

— Não faço ideia. — se inclina para mais perto, aproveitamos que todos estão distraídos ao montarem seus pratos. — Descobri uma coisa sobre o pai de Kailan.

Fico sóbria no mesmo instante.

— O quê?

— Depois te conto tudo, prometo. E espero que você me conte tudo também. — desvia o olhar de Melissa para mim.

Gemo internamente. Odeio ter que me explicar, tinha esquecido disso.

Coloco o nhoque em meu prato (pela consistência, sei que foi Nathan que vez. Por Deus, espero que ninguém nunca mais o deixe cozinhar), e duas colheres de arroz (que está um pouco duro. Kailan, claro.), e evito qualquer comida que pareça aceitáveis aos olhos.

Quando termino, sinto a atenção de Hilary em mim mas a ignoro.

— Antes de comermos eu gostaria de fazer um anunciado. — Kailan se levanta, só então noto que, pela primeira vez em toda a sua vida, seu cabelo está arrumado para o lado e não caindo em seus olhos. — Na verdade, Hilary e eu gostaríamos.

Kailan mudou o cabelo. Ele não só o arrumou como também o cortou, ele... Desvio os olhos para meu pai que encara o neto com toda a atenção do mundo.

E então percebo sobre o que isso – esse jantar, essa mudança –, se trata.

— Não... — sussurro e sei que Nathan e Cristina pensaram o mesmo que eu, porque nós três estamos agarrando os talheres como âncoras.

— Eu sei que estou um pouco noivo demais para isso, mas meu avô ficou comprometido a me ensinar tudo sobre a empresa tem alguns anos. Então — solta o ar. —, quando ele se aposentar, eu serei o novo dono da Alcance International. 

Sinto todo o ar do ambiente voltar a circular. Minhas costas relaxam contra a cadeira, e eu solto os talheres discretamente.

Mas ele ainda não terminou.

— Ah — ele retoma, dessa vez fazendo Hilary se levantar ao seu lado. —, e eu já tenho um herdeiro.

— Como é que é? — Tati questiona.

— Em menos de um ano teremos um novo Ribeiro-Cavalcanti à mesa — ele olha nos meus olhos e posso jurar que nesse momento eu não sou nada além de um vazio enorme. —, Hilary e eu estamos grávidos.

A namorada do meu sobrinho [Enemies to lovers lésbico✓]Onde histórias criam vida. Descubra agora