01. a visita

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Inglaterra 1987

— [...] em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo... Amém

E então, Charlotte abriu os olhos. Deixando com que as vidraças da catedral deixassem a luz ir diretamente aos seus olhos, uma luz bonita, amanteigada. Se sentiu bem. Estava mais leve quando tudo ficava em silêncio naqueles pequenos segundos quando todos começavam a se 'despedir de Deus' ou alguma coisa assim. Ouvia a própria respiração enquanto fechava os olhos, sem nenhum tipo de sorriso no rosto.

Apesar de tudo, era gostoso estar ali nesses momentos, quando todos eram obrigados a deixá-la em paz e apenas começavam a orar sozinhos, um por si. Mas nunca era assim para sempre, nunca foi assim.

— Ande, levante-se, Cohen— a Irmã Thompson, senhora de meia idade, a chamou com o semblante irritado de sempre. Charlotte se levantou, arrumando o hábito enquanto se esgueirava para sair dos bancos e seguir a irmã que já andava para frente. Teria muito o que fazer naquele dia e a última coisa que queria era a Thompson brava pelo dia inteiro.

Andando pelos corredores da congregação ainda atrás da senhora, todo em cores mais escuras do que originalmente já foi, em tons de poeira e verde musgo, o chão branco que a deixava com calafrios só de pensar nos dias que passou limpando todo o corredor quando mais nova, Charlotte se assustou ao vê-la parando subitamente.

Aquela velha senhora já a deixou, muitas vezes, com a pele marcada em vermelho ou até roxo. Seja por desobediência ou apenas por não compreender suas antigas aulas. Já se ajoelhou em milho por causa dela, já teve a mão cortada pela régua uma vez. Mas o que poderia fazer? Era o certo, sempre foi assim. A dor é necessária, não é?

Depois de finalmente terminar os estudos convencionais, agora estava prestes a começar seu juniorato para virar uma freira da Catedral de Birmingham. Esteve ali por 3 anos apenas para isso, depois de deixar sua casa. Seus pais só a veriam de novo em alguns anos, provavelmente quando conseguisse o posto de freira e começasse a ganhar alguma coisa ali. Por enquanto, continuaria ao lado de suas irmãs e irmãos.

Descobriu que iriam sair naquele dia, finalmente. Os dias que podia sair da congregação, sem que fosse para a catedral, eram seus melhores dias. Quando finalmente poderia ter a visão privilegiada do centro da cidade sem que fosse pela janela de grades de seu quarto.

Escondeu o sorriso contente enquanto ia até a sala da recepção para pedir sua identidade, mantida longe de si quando estava ali dentro, dado apenas quando estava fora.

— Irmã? — Charlotte a chamou por trás, logo que desciam as escadas para chegar à rua. A senhora não respondeu, mas a olhou irritada para que continuasse de uma vez — O que faremos hoje? — perguntou sorrindo suavemente, sempre mantendo sua postura.

— Arrume seu crucifixo — disse antes — iremos ao hospital — sua voz, no entanto, não parecia muito contente — houve o primeiro caso de AIDS da cidade — ainda continuava com o humor pior do que o normal

— Minha nossa -— Charlotte se preocupou - Bem... Ele, ou ela, está bem? — perguntou um pouco assustada, tinha medo de quando fosse acontecer, mas sabia que alguma hora isso iria acontecer.

— Tsk, e isso importa? — ela ouviu Thompson murmurar e sua pergunta acabou sendo ignorada. Tentou afastar os pensamentos negativos sobre aquela senhora, sendo sua superior Charlotte deveria sentir algo como agradecimento por ela. Afinal, era uma freira de respeito, sempre sendo anunciada pelo Padre quando chegava as missas.

Andando pela calçada, Charlotte facilmente se distraía com os carros coloridos que passavam pelo lado ou com o quintal das casas por onde passava. Era tudo tão diferente de onde nasceu e onde passou a viver desde que se mudou.

NIGHTRAIN, Baji KeisukeOnde histórias criam vida. Descubra agora