CAPÍTULO 27

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Mônica acordou com as mãozinhas de Bernie tocando em seu rosto, ele sorriu.
"Oi, mamãe." Ele sussurrou. Bestial se virou e abraçou os dois, Bernie se ajeitou entre os braços dele.
"Oi, papai." Ele disse e fechou os olhinhos. Bestial alisou os cabelinhos finos e loiros dele para trás, como se estivesse encantado com ele. Essa era a impressão que Mônica sempre tinha quando observava o olhar com que Bestial olhava para Bernie. Ela também se sentia igual. Encantada, maravilhada, e até um pouco temerosa, pois ela não fez nada para merecê-lo, ela não o carregou em seu ventre, ela só deu a sorte de ter uma irmã única, dona do maior coração que se pudesse existir. E continuando esse pensamento ela focou seus olhos em Bestial. Ela também não fez nada para merecê-lo. Na verdade, Mônica sentia que nunca seria capaz de fazer algo grande, bom, inacreditável o suficiente para merecer o amor dele. Seria esse o paradoxo do amor? Algo que te faça se sentir do tamanho do mundo ao mesmo tempo que se descobria menor que o mais simples dos organismos?
"Menor que uma bactéria?" Ela sussurrou.
"O quê?" Ela riu, ele sorriu. Bestial não era daqueles idiotas que riam por rir, ele a encarou com o semblante divertido e esperou. Mas Mônica tinha falado por toda a noite, ela contou tudo de sua vida, todas as histórias idiotas e algumas até constrangedoras. Todas as partes tristes, como não ter podido ir em sua formatura por causa de sua calda. Ou não ter tido um namorado, ou nunca ter sido beijada antes de Honest ter tocado os lábios dela, daquela forma leve. Bestial quis sair da cama e ir quebrar a cara do 'filhote atrevido' como ele disse, ela sorriu ao se lembrar.
"Bactéria?" Ele disse e ergueu as sobrancelhas grossas, castanhas da mesma cor rica dos volumosos cabelos dele. O visual polido e sofisticado já estava esquecido, seus cabelos estavam compridos passando dos ombros e ele ainda aparava a barba, mas estava com o rosto muito mais másculo e rústico. Muito mais...
Uma pontada forte a fez arregalar os olhos, ele se levantou de um pulo, acordando Bernie.
"Mamãe?" O filhotinho resmungou, Mônica engoliu em seco, resistiu a dor travando os dentes e se levantou devagar. Bestial não se alarmou, ele a olhou esperando dizer o que houve, calmo, mas alerta. Mônica indicou Bernie, pedindo com os olhos que ele o tirasse do quarto, ele baixou os olhos, o azul ficando de um tom que ela nunca tinha visto, quase cinza escuro, a cor das nuvens de tempestade, dos céus tristes, das mortalhas.
Ele pegou Bernie com delicadeza, saiu do quarto rapidamente, Mônica destravou as pernas, o jato de sangue escorreu por suas pernas, ensopando a calça do pijama. A dor aumentava e ela se apegou ao seu conhecimento científico. Poderiam ser tantas coisas, poderia ser...
Ele voltou, pegou uma calça qualquer no closet e a pegou nos braços.
"Isaque está vindo com um jipe, mas vamos indo." Ele disse, Mônica travou todo o maxilar, calou o grito de dor, pois ela sabia que seu primeiro grito, seu primeiro gemido ia ser seguido por muitos outros e isso marcaria o início da perda de sua filhotinha. Ela não iria chorar. Não agora, quando talvez ainda houvesse a menor esperança. Bestial a segurava com firmeza, indo o mais rápido que podia sem sacudi-la. Ele olhava para a frente, para a estrada, levá-la nos braços por toda aquela distância era o que podia fazer, e ele fazia isso com toda a diligência. Do mesmo jeito que Mônica se recusava a gritar com a dor que só aumentava, com o sangue que continuava se esvaindo, também assim, Bestial andava quase correndo, mas sem sacudí-la, ela estava mais estável do que se estivesse num jipe.
Algum tempo depois, Isaac os alcançou, ele subiu no jipe, se sentou e a abraçou.
"Vai dar tudo certo." Ele disse, mas seus olhos continuavam daquela cor cinza escura, e suas palavras pareceram mais uma pergunta. Mônica escondeu o rosto no pescoço forte, a dor estava insuportável, as lágrimas vieram, ela não teve mais força para contê-las.
No hospital, a doutora Trisha estava na porta, com Destiny e Florest a postos. Onde estava Honest? Não vê-lo fez um toque de pânico se juntar a dor.
Eles foram rápidos e eficientes, Mônica porém se deixou levar pela dor e quando Trisha tirou sua calça e todo o sangue escorreu inundando a cama hospitalar, ela gritou. Bestial segurou a mão dela e virou seu rosto para o dele. Mônica estava mergulhada em dor e tristeza, ele colou sua testa com a dela e sussurrou:
"Vamos passar por isso. Eu estou aqui." Ela fechou os olhos e inspirou o cheiro dele. Haviam vários outros cheiros, mas ela se concentrou no dele. Se inundou com ele, o cheiro do homem que a amava, o homem que estava ali, mesmo com a constatação de que ela não foi capaz de levar a gestação do sonho deles adiante. E talvez nunca seria. Ela abriu os olhos e mergulhou nos olhos dele, as bordas de sua visão começaram a escurecer, todavia ela não queria apagar, ela queria passar todos os minutos que pudesse ainda com a sua filhotinha, mas o frio em sua espinha lhe dizia que sua filhotinha não existia mais.
Mônica acordou num dos quartos do hospital, a doutora Trisha estava sentada de um jeito estranho numa poltrona, Florest olhava pela janela, Destiny estava sentado no chão, apoiado em Honest. Este estava com a cabeça pra trás, olhando para o teto. Tudo muito estranho, assim como Bestial deitado numa outra cama, ao lado dela.
"Oi." Ele disse abrindo os olhos, Honest se levantou deixando Destiny cair e bater a cabeça no chão quando se levantou.
"Que porra!" Destiny xingou se levantando, Mônica sorriu.
"Descobrimos uma utilidade pra você, Des, Eu te bato e os pacientes riem." Honest disse, os olhos porém estavam tristes. Ele não perdeu a piada, mas a piada não ajudou a descontrair o ambiente.
"Oi, querida." A doutora Trisha se aproximou, lhe sorriu e a beijou no rosto, como só uma mãe podia beijar. Mônica sorriu, mas se aconchegou nos braços de Bestial, escondendo seu rosto no pescoço dele. Aquele era seu lugar seguro no mundo. Ali, nada poderia atingí-la, só ela mesma.
"Eu amo você. Todos amamos você. Estamos aqui e não vamos sair, enquanto precisar de nós, estaremos aqui." Ele disse, alisando o cabelo dela.
Mas ela queria ficar sozinha. Ela não os merecia. Ela...
"Não. Não faça essa coisa de se esconder. Eu não fiquei todo esse tempo nessa cadeira para você achar que não pode nos olhar nos olhos. Olhe pra mim, Mônica Bishop. Eu preciso te dizer a fêmea corajosa que você foi, eu preciso me orgulhar da minha amiga. Somos amigas, ou não?" Trisha disse, os olhos azuis duros. Ela usava o tom que fazia qualquer um se sentir uma criança ante o poder que havia dentro dela. A autoridade que muitos homens e mulheres passavam a vida tentando conquistar e poucos conseguiam. Ela nasceu com isso.
Mônica ergueu seu corpo, se sentou com facilidade. É claro que estaria recuperada, é claro que seu corpo estaria como novo, Ela era Nova Espécie e estava nas mãos dos melhores médicos que existiam. Se houvesse uma forma de sua filhotinha estar ainda viva, eles teriam descoberto, eles teriam executado. O que não tem remédio, remediado está. Essa era uma certeza cruel, mas era uma certeza.
"Eu agradeço. Agradeço a todo esforço, a todo carinho, agradeço, agradeço..." A voz dela falhou, ela olhou para Trisha, a médica lhe ergueu o queixo.
"Obrigada, eu amo... Vocês." Honest e Destiny se olharam, Florest lhe beijou a testa. Ela os amava. Isso era uma certeza tal a cruel certeza da vida que era a morte.
Um a um, eles saíram, até que só ela e Bestial ficaram no quarto.
"Isaac, Beck e as crianças já sabem?" Ela perguntou, ele acenou.
"Que dia é hoje?" Ela sentia a cabeça leve.
"Quarta." Ele disse e a beijou de leve, bem leve. Dois dias tinham se passado.
Mônica aprofundou o beijo, ela o queria. Havia algo frio e escuro dentro dela, algo que só o calor e a luz de Bestial podiam afugentar. Ela se sentia a borda, parecia estar andando a beira de um precipício de sofrimento e só os braços fortes dele poderiam impedí-la de cair.
Mas ele afastou o rosto.
"Calma. Você ainda está se recuperando. E seus irmãos chegaram." Ele disse e se levantou. Mônica sentiu a rejeição bater forte. Ou ela estava errada? Ele tinha razão, o cheiro de Rebbeca e Isaac chegava até o nariz dela. Ou ele não a queria mais? Nenhum macho iria querer passar por aquilo de novo, ele talvez nunca mais a tocasse.
A porta se abriu, Rebbeca, Isaac e as crianças se jogaram sobre ela, todos falando juntos, Josh era o mais triste. É claro que ele tinha presenciado um dos abortos de Beck, ele talvez fosse pequeno para entender, mas a lembrança devia estar ainda na cabecinha dele.
"Eu sinto muito, tia." Ele disse beijando a mão dela, como o rapazinho que ele era.
"Papai disse que a Mia virou um anjinho e foi para o céu. Talvez o tio Adriel..." Missy disse, mas Josh deu uma cotovelada nela.
"Esse céu é diferente!" Ele disse, Mônica tocou no rosto dela.
"Obrigada por pensar nisso, querida. Eu me sinto melhor sabendo que ela é um anjinho agora, pois poderá estar sempre com a gente." Mônica disse, Missy sorriu.
Bernie a abraçou e não disse nada, afinal ele era muito novinho para entender, mas foi o melhor consolo que ela teve. Mônica não queria falar disso, Mônica não queria pensar no que aconteceu. Ela só queria ficar ali, quieta, com eles.
Rebbeca se sentou ao lado dela e a abraçou pelos ombros, Isaac passou um braço por sua cintura por trás, entre o corpo dela e a cabeceira da cama. As crianças se empoleiraram sobre ela e Mônica fechou os olhos, ela não estava sozinha. Bestial ficou da porta, mas o olhar dele era de...
Pena? Dor? Decepção? É claro que ela não soube decifrar aquele olhar. Não era o olhar cinza, mas também não era o azul claro, quente, apaixonado.
Eram olhos de luto. Ele estava em luto.
Eles todos estavam.
No dia seguinte, Mônica voltou para casa. Não havia dor, não havia nem cicatriz, foi um aborto espontâneo, as drogas regenerativas fizeram seu papel junto a genética Nova Espécie de Mônica. O corpo estava recuperado, a saúde estava ótima, os exames mostraram isso. Mas ela estava quebrada. Todos estavam pisando em ovos com ela, sempre conversando, sempre tentando fazê-la sorrir, tentando fazê-la se sentir melhor.
Mas naquele momento isso não era possível. Mônica passou dois dias dentro de seu quarto sem falar com ninguém. Bestial dormiu com ela, mas ele também tinha sua carga de sofrimento. Ele estava solícito, atento a qualquer coisa que ela precisasse, mas ela só queria poder fazer algo por ele, ela também queria consolá-lo, ainda que não soubesse como. Ela perdeu a bebê. Ela era a culpada. Suas mentiras trouxeram isso para eles.
Mais dias se passaram, a culpa a estava sufocando, a solicitude e o carinho preocupado de todos com ela não ajudavam. Ela esperou Bestial e Bernie dormirem e saiu. Era madrugada, estava escuro, ela saiu sem rumo. No zoológico, uma luz estava acessa, ela foi pra lá.
Dean e Simple bebiam e conversavam baixo, absortos numa conversa sobre... imunossupressão? O que Simple saberia sobre isso?
Talvez mais que ela, ele era um gênio, embora nem sempre as pessoas se lembravam disso.
"Mônica?" Dean se levantou do banco meio tonto, ele não era um bom bebedor. Simple sorriu ao ajudá-lo a se sentar de volta.
"Não precisa ser um cavalheiro, é madrugada e estamos bêbados. Senta aí, fêmea" A voz dele estava um pouco pastosa, mas os olhos eram os mesmos. Dourados, atentos e um pouco ternos. Nada da distância que ela sentia antes. Mônica poderia até gostar desse Simple.
"Estou indo embora amanhã. Seu irmão sinalizou uma certa curiosidade, mas sei lá, é como se eu fosse ficar com você, você me entende?" Ele disse e riu. Simple só a encarou.
"Não viemos do mesmo embrião. Eu sou mais de um ano mais velha que ele." Ela se sentou. Simple empurrou a garrafa na direção dela, ela tomou um grande gole. Dean sempre teve uísque em seu escritório, Mônica nunca gostou muito, mas ela sabia beber. Talvez ajudasse de alguma forma.
"Uma fêmea que bebe uísque. Bestial sabe o quanto ele é sortudo?" Simple perguntou com a mesma voz pastosa.
"Pare com essa merda, você não está bêbado. E você também não é o Simple." Ela tomou outro gole e o encarou. Ele não mudou o olhar, Mônica aguentou firme. Ela estava passando da fase da negação e isolamento para a raiva em grande estilo. Simple, porém, a olhou com pena e ela deslizou direto para a depressão. Nada de barganha para ela. Não havia o que barganhar.
"Eu..." Ela se encostou em Dean e não terminou o que ia dizer.
"Bom, eu tenho de fazer xixi. Acha que o piloto Bonitão vai estar mesmo me esperando amanhã?" Dean foi falando e saindo da área de convivência. Logo o ouviram cair na cama. Sem ir ao banheiro.
"Ele não ia mijar?" Mônica perguntou, Simple deu de ombros.
"Ele vai, só que não no banheiro." Ele balançou a cabeça com pesar.
"Honest cuida dele depois." Honest. Ele cuidava de todos.
Mônica se levantou e uma tonteira a tomou, Simple a amparou. Ela passou os braços pelos ombros dele e o olhou bem fundo nos olhos dourados.
"Eu ainda acho que você não é Simple. Simple é distante, você é... Bom."
"Vamos, vou te levar pra casa." Ele a pegou no colo e começou a andar com ela nos braços.
"Você não está bêbado." Ela disse. Os dois goles grandes a deixaram tonta.
"Acertou." Ele sorriu travesso, mas os três sorriam assim.
"Como é poder ter três vidas diferentes? Eu mal posso tolerar a minha e eu só vivo uma." Ela perguntou, ele não respondeu.
No meio do caminho, ele parou e a desceu. Mônica cambaleou, mas não foram os braços de Simple que a amparam dessa vez.
"Você deu uísque para ela?" Bestial rosnou. Simple se esticou e o enfrentou friamente.
"Alguém tinha de dar alguma coisa." Ele disse, se virou e sumiu.
"Eu não preciso que me dêem nada, sou adulta, eu bebi por que quis." Ela disse. Bestial não discutiu, se virou e seguiu o caminho da casa deles. Mônica também seguiu o mesmo caminho, cada passo dela doía, ela não queria entrar ali, ela queria sumir.
Na sala, ela se sentou no sofá, não queria conversar, ela queria algo, mas não sabia o quê.
No quarto, Bestial se revirava na cama, Bernie ressonava. Mônica tomando coragem, entrou no quarto, pegou Bernie e o colocou com Josh. Se a coragem veio por causa do uísque, ou não, não importava, ela só precisava dele e não de um jeito bom.
Ele estava de pé quando ela voltou ao quarto.
"Mônica. Eu não sei se..." Ele disse, ela o puxou pelos cabelos, tomou sua boca com violência. Ela precisava sentir alguma coisa, sua alma estava se esvanecendo, se tornando uma névoa, algo sem cor, insólito, frio. Ele suspirou e a beijou com delicadeza, Mônica mordeu o lábio inferior dele. Ela não queria carinho, ela queria ardor. Ele, porém afastou a cabeça para trás.
"Mônica, calma." Ele a beijou, mas ela não o queria assim. Ela não queria que ele demonstrasse amor e cuidado, ela queria ser castigada. Ela era uma mentirosa. Ela mereceu cada vez que o demônio quebrou sua calda, afinal sua calda nasceu imprestável, mirrada, defeituosa, horrível. E agora, ela o tinha feito sofrer, ela merecia o castigo.
"Mônica." Ele a abraçou com força.
"Não. Eu não mereço seu amor. Eu quero o seu desejo. Se não puder me dar isso, diga agora." Ela estava barganhando? Essas tais fases eram tão confusas assim, ou ela não prestava nem para o luto?
"Eu amo você, não é questão de merecimento. Você só tem de me amar de volta. Se quiser, é claro." Ela se afastou.
"Eu ainda estou aprendendo. Não sou como você, não sou..." Ela não era como ninguém. Ela era uma impossibilidade científica, um clone feminino de uma matriz masculina. Nada se aplicava a ela. Ela era ela e isso estava parecendo tão pouco...
Mônica suspirou e se deitou. Bestial se deitou também e a abraçou, mas ela sentia frio. Pela primeira vez em sua vida, ela pensou no realmente ela era e a resposta foi: nada.
Ele dormiu, ela não. A madrugada deu lugar a manhã e ela ouviu um jipe ao longe. Mônica olhou para Bestial dormindo, respirou fundo, saiu da cama devagar, saiu da casa em silêncio e correu atrás do jipe em que Simple levava Dean para o heliporto.
Ela não devia ter saído da casa dele, ela tinha de morrer ali, sozinha, estéril. Exatamente como o demônio do velho Bishop disse que seria.

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