Os olhos azuis de Anahi contemplavam a fachada de vidro escuro que ocultava o interior luxuoso com toques de um estilo Europeu clássico daquele lugar. Atrás dela, na rua movimentada, carros iam e vinham, o som das buzinas se misturando às vozes altas de pessoas falando ao mesmo tempo. Mas nada daquilo parecia perturbá-la, pois ela estava imersa em lembranças do que parecia uma outra vida.
As memórias a paralisaram no lugar durante alguns minutos, até que um grupo de bailarinas conversando animadamente chamou sua atenção. As garotas — que deveriam ser novatas — passaram por ela sem notá-la, subindo a pequena escadaria que dava acesso à entrada principal da Petit Art. Aquelas meninas sequer sonhavam que haviam quase esbarrado em uma das bailarinas solistas de maior sucesso daquela companhia. Aquele pensamento deixou Anahi triste. Pensar no que ela poderia ter sido se as sucessivas tragédias não tivessem ocorrido em sua vida a deixava deprimida.
Anahi havia reunido muita coragem para ir até ali. Depois de muitas sessões de terapia com Linda, ela decidiu que ia se resolver com seu passado. Fechar algumas feridas parecia um bom primeiro passo para acabar com aquela confusão em que ela se encontrava.
Ainda meio incerta, ela subiu devagar os degraus que a levariam para dentro daquela caixinha de recordações. A cada novo passo, seu coração acelerava em expectativa e ela torcia as mãos, nervosa. Apesar do tempo quente, sentia escorrer por sua nuca um suor frio, em contraste com a corrente elétrica que parecia atravessar sua coluna.
Aquele lugar fora sua casa por muito tempo e era de se esperar que as lembranças lhe invadissem sem piedade. Como se tentasse se manter inteira e firme em sua decisão, Anahi se abraçou e finalmente atravessou a porta.
A primeira coisa que notou assim que pôs os pés no salão principal era que havia mudanças. Ainda tinha um toque de antiguidade, com suas luminárias e estátuas, mas a parede oposta à ilha da recepção era decorada agora com alguns quadros.
Anahi se aproximou, curiosa. Os quadros grandes com a moldura em dourado faziam um belo contraste com a parede bordô. Era bonito, chamativo, do jeito que fora pensado para ser. Os primeiros quadros, que ficavam mais para o lado interno do salão, eram em preto e branco. Anahi não conhecia aquelas bailarinas, mas obviamente já havia ouvido seus nomes por aí. Grandes nomes, por sinal. Martha Graham se encontrava eternizada em um salto Grand jetté no primeiro quadro. Pelo pandeiro em suas mãos, ela interpretava Esmeralda. Admirada com aquele trabalho tão delicado, Anahi foi andando devagar, contemplando as historias que cada um daqueles quadros contava. Ela notou que seguia um padrão: eram as melhores bailarinas solistas interpretando balés de repertório. Dom Quixote, Giselle, Copélia...eram décadas de sucesso e história representadas ali.
Um sorriso brincava nos lábios de Anahi, até que ela finalmente chegou no último quadro. Ela recuou brevemente, a pulsação acelerada devido ao impacto que aquela fotografia lhe causou.
Próximo à porta de entrada do salão, ela viu o último grande balé de repertório que havia sido apresentado na Petit Art. O quadro era preenchido por seu rosto sereno, caracterizada como Cisne Branco. A coroa em sua cabeça demonstrava que ela não apenas interpretava a rainha dos cisnes naquele espetáculo, mas que ela era a rainha da nova geração daquela escola.
Anahi se aproximou novamente, erguendo as mãos trêmulas para tocá-lo. Ela fechou os olhos, sentindo muito mais do que aquele toque permitia. Seus sentidos iam além do tato agora, e ela podia ouvir com clareza os aplausos, ver com nitidez o rosto embascado das pessoas na plateia diante da sua performance, podia sentir o gosto amargo do sangue refluindo por sua boca ao final daquele espetáculo permeado por requintes de tragédia.
Ela fechou os olhos com ainda mais força, tentando conter aquela ardência, mas não conseguiu. Já estava de cabeça baixa quando um soluço escapou por sua garganta, ao mesmo tempo em que a sua mão deslizava pelo quadro, até cair ao lado do seu corpo.