Música tema de Ti Belo: "Hurt", de Nine Inch Nails, por Johnny Cash (escute no link acima).
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𝓧ícara de café em mãos e um pão de queijo quentinho, o ex-delegado Belo não queria saber de outra vida. Mirou pela enésima vez os eucaliptos ao longe, cujo aroma vinha suavemente bater em suas narinas. Reverberando em seus ouvidos, uma doce e triste música de Johnny Cash embalava seus pensamentos. Ele revivia em flashes fatos de um passado muito longínquo. O registro estava sendo feito lenta e pausadamente à mão, caneta em punho, em caderno tipo espiral:"Adriana, a quem tanto amei... Por que não pude salvá-la? E por que não morri em seu lugar? Dói-me pensar que no fundo fui o causador de sua morte."
Enquanto escrevia, a TV parou sua exibição habitual para uma edição extra local, com o repórter entrando ao vivo:
— A celebração do Jubileu do Senhor Bom Jesus de Matosinhos será apenas religiosa neste ano de 2021. Ainda não temos um cenário tranquilo para a realização das festividades com as tradicionais barraquinhas, em virtude da pandemia do coronavírus, que assola o país desde 2020. Mas a boa notícia é que a Igreja Matriz iniciou a pré-novena no dia 05, prestes a se encerrar no dia de hoje, 14, dia do padroeiro, com transmissão ao vivo por este canal.
"Esperamos que no próximo ano possamos ter o Jubileu movimentando a nossa cidade novamente, atraindo visitantes e romeiros, envolvendo o seu povo nesta tradição que está inserida na história há mais de 260 anos, motivo de orgulho para a população congonhense. A Programação detalhada está disponível em nosso portal, o G1."
Voltando o canal de TV à sua programação normal, Belo prosseguiu em sua escrita, mas poucos instantes depois a tradicional vinheta para eventos extraordinários o interrompeu de novo:
— O que será agora?
Olhos atentos na tela, novamente o mesmo repórter, dessa vez caminhado célere e ofegante, o câmera a lhe acompanhar os passos.
— Notícia urgente! Estamos ao vivo falando do Santuário do Senhor Bom Jesus e é inacreditável! Um furgão em alta velocidade acaba de chegar na praça do Santuário... — E seu tom de voz ia-se tornando inflamado: — Meu Deus, derrubou os cones e invadiu o átrio das Capelas dos Passos... e agora parou diante da escadaria... Os ocupantes acabam de sair do veículo... Um homem usando da força domina uma mulher, arma em punho e outro lhe dá guarida, de costas para os profetas e também armado, enquanto um terceiro já sobe os degraus, segurando uma mochila.
— Vá subindo, Bruno, para o lado esquerdo e pare no patamar, ou mato Nora!
— Largue a mulher e se renda — gritou de longe um sargento da polícia, mas já sob a mira de Yago.
O repórter dividiu a tela com o âncora nos estúdios:
— Pedro, temos informações de que um padre, de nome Germano, sequestrou a mulher ruiva e seu noivo, Bruno Pereira Lobo. A ruiva se chama Nora Gômer, é antropóloga. O noivo é advogado, sócio na Fontana Lobo Advogados Associados. Ambos eram mantidos reféns no retiro dos Casqueira, a dezesseis quilômetros de onde vocês estão, zona rural do Esmeril. Parece que também o sócio de Bruno, Jorge Fontana, foi sequestrado. Procure obter mais informações.
No local, o número de policiais era irrisório, apenas uma viatura e um sargento, a fazer o acompanhamento de alguns romeiros, insistentes nas orações presenciais, a despeito do coronavírus. O repórter dirigiu-se a ele, com o câmera sempre em seu encalço:
— Sargento... Sargento, pode nos dizer o que ele quer para liberar os reféns?
O militar relutou, mas gostava de holofotes:
— Quer um documento perdido. Eles chamam de "documento Q".
— E do que se trata?
— Não sei. Acabou de chegar essa informação pelo rádio.
O repórter indicou ao câmera que circundasse 360 graus o átrio:
— A situação está bem difícil e a polícia está com dificuldades. Parece que uma viatura está retida na zona rural, sem comunicação e só há uma aqui na praça. Pela não realização da festa, a cidade não possui contingente, no momento.
E fez um sinal com a mão, para que o câmera o seguisse:
— Somente há acesso pela frente, pelo átrio das capelas, pois o fundo da igreja está interditado devido à restauração.
Depois do giro, o câmera focou em Germano e Nora.
— Desista, Germano... — gritava Bruno desesperado. Já tinha subido dez degraus, atingindo o patamar intermediário do adro, posicionando-se próximo ao profeta Baruc.
— Se eu morrer, ela também morre. — E foi-se afastando na direção da escadaria, andando de costas, conduzindo Nora com o braço envolvendo seu pescoço; e na outra mão, a arma. Yago permanecia na praça, mirando o inerte sargento.
Padre Germano declarou:
— Eu vou pelo outro lado da escada, Bruno. Fique onde está.
Enforcando Nora e trazendo-a sempre junto de si, Padre Germano subiu sem jamais dar as costas ao policial no átrio. Indo sete degraus além do que Bruno subira, atingiu o topo e aproximou-se do profeta Oséias:
— Ah, nosso velho conhecido, onde Adriana foi morta. O mais curioso é que a mulher de Oséias se chamava Gômer, sabia disso, Bruno? — gargalhou.
Padre Germano valia-se do fato de que a Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, devido à pandemia, encontrava-se em reformas e todo seu entorno, junto às muretas e grades, estava tampado por altos tapumes, sendo o único acesso ao átrio superior, a própria escadaria que ele alçara. Isso lhe dava certa segurança na retaguarda e visão privilegiada da praça abaixo, mas precisava ser rápido:
— Pegue os explosivos, na mochila.
— O quê?
— Vamos. São dois, coloque um de cada lado dos pés da estátua, rápido. — Já ouviam a sirene de outra viatura, aproximando-se: — Vamos, Bruno. Rápido!
Bruno fez o que ele mandou. Assim que o material foi colocado, Padre Germano ordenou:
— Pegue o detonador e suba.
Dois policiais já forçavam os tapumes do fundo da igreja, tentando acessar o pátio superior. Eram os dois do retiro, que haviam parado um carro na estrada e conseguido mais um estepe para a viatura.
— Agora, exploda!
A detonação foi ouvida em praticamente toda a cidade, devido à posição elevada do Santuário. O pilar quadrado de sustentação da escultura trincou de cima a baixo. Com os pés explodidos, o profeta, com seu 1,80 metro de altura, tombou para o lado direito e caiu. A metade superior chocou-se violentamente contra o chão, partindo-se novamente em duas, como há cinquenta e sete anos. Entre gritos de horror de religiosos e fiéis, que lá de baixo viam despedaçar-se uma obra de mais de duzentos anos, surgiu, a partir do interior oco da estátua, um invólucro. Bruno o pegou e abriu: era um códice em papiro!
— O evangelho "Q"! — exultou Germano.
Nora estava quase sem fôlego, mal conseguia articular as palavras. Seus olhos buscavam em desespero pelo azul turquesa das faces de Bruno, sem sucesso.
— Você já tem o que quer, deixe-nos em paz — disse Bruno.
— Não! Vocês vêm comigo. Desça com o códice e entre no carro. E deixa ele ligado. Desço atrás de você.
E assim que Bruno fez o solicitado, dando a partida, Padre Germano desceu e reiterou, já próximo do profeta Isaías:
— Afastem-se todos. Qualquer movimento, ela morre.
A transmissão de TV voltou ao âncora:
— A qualquer momento, mais notícias...
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A Fonte Q
Mystery / Thriller🏆1º Lugar no Concurso Nove Caudas (Suspense/Mistério). Olavo Ravacini, jornalista e escritor, editor chefe da Editora Ravacini, tencionando publicar um manuscrito, confiado às suas mãos vinte anos atrás por Domingos Casqueira, teme processos por ca...