𝓨ago acabara trocando tiros com os policiais. Atingido na perna, largou a arma e vendo-se em desvantagem, rendeu-se. Enquanto isso, Padre Germano já tinha entrado no banco de trás do carro com Nora:
— Vamos Bruno. Meta o pé!
— Para onde?
— Eu vou te falando.
Bruno deu ré no carro e saiu à direita na rua, e logo abaixo à esquerda, seguindo por dentro da cidade para a estrada de acesso à mineradora. De duas viaturas, apenas uma os seguiu, mantendo distância, tendo a outra ficado para levar Yago detido ao hospital. Os reforços ainda estavam a caminho, mas chegando pela BR-040, onde uma carreta tombara e congestionava a rodovia.
Transitado cinco quilômetros, um baque fez sentir a chegada da estrada de terra. Bruno conduzia o carro a pelo menos 50 km/h, uma velocidade alta para uma pista não capeada e isso levantava uma nuvem de poeira que deixava o carro de polícia desorientado. Padre Germano avisou Bruno que tocasse adiante. Por duas vezes encontraram caminhões, o que enervou o padre:
— Passe o desgraçado, Bruno.
— Não dá, não tá vendo?
— Passe!
E Bruno arriscava-se muito mais do que Omar na estrada de Qumran. Seguia sem saber o destino e parecia que o tempo estacionara, tamanha era a tensão. Os minutos passavam lentamente, intermináveis e sofríveis. Mais quatro quilômetros, contudo, chegaram ao destino:
— Entre na mineradora, vamos. Passe direto pela portaria.
— Está louco?
— Faça o que estou falando. Agora!
E sem pedir passagem, Bruno adentrou a área privada feito uma flecha, arrebentando a cancela. O vigia saiu correndo da guarita:
— Ei! Pare!
Não sendo atendido, ficou no meio da entrada, abrindo os braços e gesticulando.
O furgão seguiu à direita e Germano pediu para que Bruno parasse próximo a uma correia transportadora de minério, que abastecia um forno produtor de ferro gusa com 30 metros de altura e a 500 metros de distância da pilha do mineral bruto. A seu comando, saíram os três do carro. A sirene da polícia já se escutava ao longe, mas ainda retida pelos caminhões na estrada.
— Suba na escada metálica e jogue o códice na esteira. Vamos! Faça o que estou mandando.
— Não, Bruno! — gritou Nora.
Mas o sócio da Fontana Lobo não queria conversa, a vida de Nora era mais importante do que qualquer documento escrito em qualquer época da humanidade. Subiu velozmente a escada, atingindo o patamar de acesso ao passadiço da correia, distante do solo pelo menos dois metros e depositou o invólucro sobre o minério, que silenciosamente serviu de esteira para o fúnebre cortejo do secular manuscrito. Quando desceu, Padre Germano declarou:
— Preparem-se para morrer.
Soltou Nora, que correu para os braços de Bruno:
— Nora!
— Bruno!
— Que lindo, vão morrer juntos e abraçados.
Do bolso tirou duas correntinhas com as famosas medalhas da Ordem. Jogou-as para Bruno, que num ato reflexo pegou-as com a mão.
— Um presente meu.
E quando engatilhou a arma para atirar, ouviu-se um disparo. Padre Germano perdeu a mira, atirando para cima e logo caiu, alvejado pela pontaria certeira de um segurança da mineradora. Cercaram-no rapidamente e de sua mão foi tomada a arma. Bruno voltou para a escada, pensando em correr pelo passadiço e resgatar o códice. Vários técnicos da mineradora tinham-se aproximado para ver o que havia ocorrido. Um deles gritou:
— Não adianta, você não tem como alcançar.
— Qual a velocidade da esteira?
— Três metros por segundo.
— E quanto tempo para o minério ir da pilha até o forno?
— Três minutos.
Bruno balançou a cabeça:
— De fato! Humanamente impossível!
O técnico concordou:
— Somente sendo o Flash. E não sobrará nada, são 1200 graus Celsius.
— Não tem como parar a esteira? Use o rádio.
— Não há ninguém no controle, é tudo automático. E até alcançarmos os controles manuais... Desista.
Bruno já nem conseguia avistar o códice, pois o sol do fim de tarde lhe atrapalhava a visão. Carreado pelas britas de hematita, a cada três metros por segundo, o evangelho "Q" subia vinte centímetros, estando a poucos de metros de se precipitar ao fim.
Nora abraçou-o, mortificada, mas feliz por estarem salvos:
— Como disse João, em Q 3,12 (ou 3,17): "Ele traz a pá em sua mão e limpará sua eira, juntando seu trigo no celeiro, mas queimará a palha com fogo inextinguível".¹
Não puderam ver, mas lentamente o papiro contendo o tão precioso documento despencou em meio às britas de minério e desapareceu no fogo da fornalha. Ainda assim, as palavras de Jesus permaneceriam vivas, pois como dissera Mahatma Gandhi: "Ainda que se percam todos os livros sacros da humanidade e só se salve 'O sermão da montanha', nada estará perdido".
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Há muito tempo que o noticiário extra saíra do ar e Belo já havia desligado a televisão. Estava preocupado com Bruno e por isso ligou para Jorge Fontana, que não atendeu. Para sua estranheza, quem ligou foi Basílio de Almeida:
— Basílio? O que houve?
— Notícias de Jorge e Bruno. Estão bem.
— Ei, o que você está aprontando dessa vez? Não se aposentou?
— Sim, mas não me deixam em paz, o que posso fazer?
Duas horas depois, Jorge retornava a ligação:
— Graças a Deus terminou bem... Padre Germano? Tomou um tiro, mas está vivo. A polícia o prendeu... O documento "Q"? Destruído, num forno da CSN!
— Verdade? Melhor assim. Quantos já não morreram por causa desse bendito pedaço de papiro. Tudo ilusão dessa vida, pois a verdade é unicamente a do túmulo, o que vem depois ninguém sabe.
O aroma dos eucaliptos novamente chegou ao olfato do ex-delegado. Continuou sereno, ouvindo a música de fundo e pensando na canção Hurt, como intérprete Johnny Cash: "Hoje eu me machuquei, para ver se eu ainda sinto, e foquei na dor, a única coisa de fato real (...)".
"[...] Todos que eu conheço, vão embora, no final [...]."
E logo mais jantaria com Laura — mas ninguém sabia desse encontro, era secreto.
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Nota:
¹ Mateus 3,12. Fonte: Pe. Konings.
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A Fonte Q
Mystery / Thriller🏆1º Lugar no Concurso Nove Caudas (Suspense/Mistério). Olavo Ravacini, jornalista e escritor, editor chefe da Editora Ravacini, tencionando publicar um manuscrito, confiado às suas mãos vinte anos atrás por Domingos Casqueira, teme processos por ca...