Chovia torrencialmente, intensidade pluviométrica jamais vista. Raios cortavam o céu e trovões explodiam qual bombas. Esgueirei-me pelos fundos de minha casa, que dava para um beco e saí, veloz, vestindo capa de chuva, guarda-chuva grudado nas mãos. Toda aquela parafernália, porém, pouco adiantava, São Pedro resolvera reeditar o dilúvio.
O coração estava aos pulos, batia agitado, tamanhos eram a pressa e o medo. As ligações telefônicas grampeadas e a vigília de meus perseguidores, vertiam agora em ansiedade, a escorrer pelos poros, como as gotas da tormenta descendo céleres, feito lobas, esperando o momento certo para o bote. E havia aquela maldita dor de cabeça, que nem o mais poderoso analgésico da Terra era capaz de aplacar.
Quando alcancei a rua principal, um carro veio em minha direção, faróis altos acesos. Parou junto ao meio fio, dando-me um banho d'água, que pouco fez diferença, molhado que já estava dos pés à cabeça. Um homem desceu e meteu-me uma luz de lanterna no rosto, gritando:
— Vai a algum lugar, Dr. Casqueira?
Joguei o guarda-chuva sobre o algoz e dei meia volta, correndo apressado beco afora. Nem a chuva forte detivera aqueles que me perseguiam. Planejava esconder-me no retiro do Esmeril, distrito de Congonhas, município vizinho ao que estava, mas não!, esperavam-me mesmo debaixo daquela tempestade. Fizesse chuva, fizesse sol, estavam agora decididos a levar-me dali e arrancar o que julgavam eu possuir.
Enquanto um deles me perseguia no beco, o outro ligou o carro e saiu, acelerado, certamente tencionando me cercar pela frente da casa, na quadra de cima. Ao final do beco, finalmente entrei e encostei o portão de aço, destrancando a porta do canil. Despi a capa de chuva, atirando-a ao chão da lavanderia.
Logo alguém batia na chapa metálica e um empurrão abriu facilmente o portão. O cão rosnou alto e sem que o intruso pudesse reagir, o feroz e forte animal saiu do canil feito bala e pulou sobre seu peito, derrubando-o. Um grito seco precedeu a queda, a batida da cabeça e a quase perda de sentidos. Pressenti os caninos da fera penetrando sua jugular e com força descomunal, o pitbull firmou a boca fechada em sua garganta. O homem fora presa fácil e indefesa. Cumprida a tarefa, o cão voltou ao seu posto, abanando-se para retirar a água dos pelos. Deitou-se e manteve novamente a guarda.
E enquanto aquele homem perecia sob as garras da fera — e o outro forçava a porta da sala para entrar, eu já me dirigia ao segundo andar, imaginando que talvez fosse melhor morrer, entregando-me enfim aos braços da morte, tal estavam contados os meus dias. Ao menos ficaria livre em definitivo daquela insuportável dor.
O último som que se ouviu foi do tiro, que ressoou em todo o interior da casa.
O delegado Jonas Casqueira subiu os degraus da escada nitidamente mal dimensionada, chegando ao segundo pavimento da residência que lhe pertencia, apressado. Não podia crer no que havia acontecido. O vizinho, um professor aposentado que vivia só, dizia ter ouvido um cão bravo e um grito, depois um tiro. O cão rosnara primeiro, muito raivoso, seguindo-se ao ataque um grito seco de homem, logo silenciado. Foi aí que veio o tiro. Conforme a testemunha, um tiro bem abafado, provavelmente no interior da casa.
— Viu o que aconteceu?
— Não, delegado. Apenas ouvi. Ah, sim, depois do tiro fui até a frente da minha casa... Um homem saiu da casa 2 pela porta da frente.
A casa da tragédia, denominada por Jonas de casa 2, geminava-se com a casa 1 pela rua de cima. A casa 1 estava alugada para a testemunha. Já o beco, com acesso pela rua de baixo, não possuía aberturas, excetuando-se o portão metálico dos fundos da casa 2. O beco era formado em sua lateral esquerda pela parede de uma fábrica e, na lateral direita, pelo muro de um terreno baldio.
— Tem certeza de que era um homem?
— Imagino que sim.
Olhou a vítima, os miolos estourados, sangue espalhado pelo entorno. A mão pendia, segurando firme uma arma calibre 38, em clara rigidez, devida a um espasmo cadavérico.
Na escrivaninha, um papel com letras cursivas e que trazia escrito:
"Já está deitado o machado à raiz das árvores; toda árvore, portanto, que não fizer bom fruto, será cortada e lançada ao fogo."¹
— O que significa isso?
Pendurados no pescoço da vítima, um cordão com pingente, ambos dourados, trazendo cunhado no metal uma ovelha entremeada a uma cruz tombada; e a base do madeiro presa às patas dianteiras do animal.
— E isso agora?
Afora as duas coisas que lhe pareceram mais descontextualizadas, a citação e o pingente, nada parecia haver ali de relevante. A peça dourada o fez lembrar-se de uma medalhinha de Nossa Senhora Aparecida que ele trazia na carteira, presente de sua mãe. Pensando nela, agradeceu a Deus por não precisar permanecer nem mais um segundo naquele funesto ambiente. E deixou-o tão apressado quanto o adentrara.
Para o homem morto no quintal do térreo, cujo sangue a chuva lavava rapidamente, pouco deu atenção, deixando-o aos cuidados da perícia técnica.
Não fora fácil ver o morto do primeiro andar naquelas condições. O sangue espalhado era o mesmo que corria em suas veias.
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Nota:
¹Mateus, 3,10; Lucas, 3,9.
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Mistério / Suspense🏆1º Lugar no Concurso Nove Caudas (Suspense/Mistério). Olavo Ravacini, jornalista e escritor, editor chefe da Editora Ravacini, tencionando publicar um manuscrito, confiado às suas mãos vinte anos atrás por Domingos Casqueira, teme processos por ca...