𝟟 "Impressionava-me a forma como Javier conduzia o assunto, passando-me a sensação de que o mesmo já fora objeto de profundas reflexões — e preocupações que sem querer eu atingia no âmago. Se eu não soubesse quem era Javier, diria que, nalguns instantes, o espanhol até passava para o lado do questionador e talvez nisso residisse a estratégia, a empatia de saber colocar-se na posição do adversário, para conhecer exatamente como o combater. Nos dizeres de Sun Tzu, em 'A Arte da Guerra': 'A habilidade de alcançar a vitória mudando e adaptando-se de acordo com o inimigo'. Javier tinha um poder inegável de inebriar e quem sabe até, de ludibriar. Era um homem a temer-se, mas eu continuava sem medir as palavras:
"— Mais uma teoria conspiratória, quero crer...
"Javier quase gargalhou, o que seria algo bem inusitado:
"— Meu caro, compreendo a dificuldade em entender, pois é um assunto que está nas entrelinhas, subliminar. Contundo, tentarei trazê-lo à superfície para você...
'Veja, a princípio nada aconteceria, mas 'Q' já poderia determinar uma espinhosa e indigesta tarefa para a Teologia, tal qual: obrigá-la a rever a cronologia de surgimento dos documentos do Novo Testamento. E já lhe adianto: rever isso afrontaria as conclusões teológicas de um dos maiores pais da Igreja, Santo Agostinho, em seu 'De Consensu Evangelistarum', em que ele declara que os Evangelhos foram escritos na ordem em que estão no cânone. Esta ordem vem de mais longe, da Vulgata Latina de São Jerônimo, quando da organização dos evangelhos e tradução da Bíblia para o latim, a pedido do papa Dâmaso I. Jerônimo tinha duas opções, a latina, cuja ordem era: 'Mateus, João, Lucas e Marcos' e a grega: 'Mateus, Marcos, Lucas e João', adotando, portanto, a segunda opção. A crítica textual hoje tenta mudar isso, invertendo a ordem dos dois primeiros, o que acaba por influir na abordagem da vida de Jesus, enquanto Deus, induzindo a que ele seja considerado apenas um homem.
'Com 'Q' confirmado, o evangelho de Marcos teria que forçosamente passar a ser considerado como o primeiro a ter sido escrito e não mais o de Mateus, pois a partir daí, Marcos e 'Q' seriam as fontes de Mateus. Isso geraria a necessidade de correção na cronologia dos documentos canônicos, em especial aqueles que Paulo teve à sua disposição; e inclusive a data de suas epístolas.
'Parece pouco, mas a teoria das duas fontes sairia bem fortalecida, abrindo campo para inúmeras outras deduções e conjecturas, perigosíssimas, por sinal. Exemplo: quanto mais os evangelhos se afastam dos fatos primitivos, menos eles podem ser considerados tendo como autores os nomes que lhes assinam, o que afeta sua autenticidade. Para se ter uma ideia, a teoria das duas fontes, se comprovada, 'empurraria' o surgimento do primeiro evangelho bíblico para o ano 70 da Era Cristã ou daí para frente, sendo que a Igreja considera o ano 50 ou até antes, como o ponto de partida."
"Eu não queria perder o rumo da questão:
"— Mas o que tudo isso tem a ver com a questão da divindade de Jesus? Pois se entendi bem, Jesus passaria a ser tão somente um homem mortal (e não mais Deus), mas não consigo ver como.
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A Fonte Q
Mistério / Suspense🏆1º Lugar no Concurso Nove Caudas (Suspense/Mistério). Olavo Ravacini, jornalista e escritor, editor chefe da Editora Ravacini, tencionando publicar um manuscrito, confiado às suas mãos vinte anos atrás por Domingos Casqueira, teme processos por ca...