I

34 4 5
                                    

𝓘mmanuel Kant já dizia: "Há uma lógica curiosa e convincente, mesmo no mais perverso pensamento humano"

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

𝓘mmanuel Kant já dizia: "Há uma lógica curiosa e convincente, mesmo no mais perverso pensamento humano". Se tudo que lera se constituía em verdade, tal afirmação bem poderia ser aplicada a Javier Loyola, com certeza o pivô de todo aquele trágico desfecho. Vinte anos depois, ainda estaria vivo? Se sim, publicar o material não limitaria os riscos a processos por calúnia e difamação, também os estenderia a possibilidade de morte.

Bruno depositou a brochura sobre a mesinha de cabeceira, perplexo:

— Será que acredito em tudo isso?

E havia muitas perguntas:

— Por que Domingos tinha uma medalhinha da Ordem no pescoço? E qual a solução para a charada da cruz? Lea, que fim levou? E onde está o documento "Q"? E o mais estranho: Domingos descreveu sua própria morte? Como isso é possível?

Efetivamente, o manuscrito não se traduzia em uma peça literária, por isso seu tom inconclusivo (e era provável que o próprio Ravacini tivesse escrito aquele último capítulo, a fim de ao menos dar um desfecho para a história, embora inusitado). Poder-se-ia dizer, no entanto, que o texto representava o primeiro ato de algo que ainda estava por vir, essa era a sensação.

Diante de tantas questões, o novo encontro com Ravacini, às 14h00 do dia seguinte, seria agora mais do que aguardado, tornava-se urgente.

꧁༺༻꧂

Liberado da leitura, Bruno dirigiu-se o mais rápido que pode ao escritório, à mesma rua da Consolação, algumas quadras abaixo da Editora Ravacini. Completando 31 anos de atividades naquele endereço, desde a época do caso Felipe Torres (genro do famoso bicheiro Nilo Romano)¹, o local já passara por inúmeras reformas, encontrando-se agora num estágio de perfeita fluidez funcional, com layout moderno e sofisticado, linhas arrojadas, em nada lembrando a editora de Ravacini. Bruno, contudo, andava pensando em mudar de ares, sonhando com a avenida Luís Carlos Berrini, mas já esbarrando na resistência do sócio, como de costume. Já fora assim uma vez no passado, quando saíram da avenida Angélica para a rua da Consolação. Jorge Fontana não era muito afeito a mudanças, apegava-se emocionalmente aos lugares.

Deixando de lado as questões imobiliárias, o advogado buscou organizar as informações que levantara junto ao cliente. E também apreciou o material preliminar gerado por seu pessoal, que desde o dia anterior já trabalhava no levantamento de informações. Durante sua leitura, pela manhã, acabou por enviar mensagens a Mário, seu colaborador direto, para que fosse pesquisando pontos específicos. O primeiro deles: fazer um levantamento completo sobre a vida de Olavo Ravacini.

Mais tarde, Mário traria dados referentes ao editor, surpreendendo Bruno com o resultado:

— O quê?

Mário era um rapaz alto e atlético, cabelo black power na parte superior da cabeça, em contraste com linhas em baixíssimo relevo e rentes ao couro cabeludo na parte inferior, unidas à barba e às costeletas em perfeito alinho. Sucesso no condomínio comercial em que ficava a Fontana Lobo, corroborou:

Fake! O site da Editora Ravacini é uma página falsa, com publicações falsas. Nenhum dos livros ali comercializados de fato existe, tampouco qualquer um dos autores.

Bruno examinou novamente o e-mail enviado para a empresa, há dois dias.

"De: Olavo Ravacini.
Para: Jorge Fontana."
"Olá, saudações literárias, sou Olavo Ravacini, editor chefe da Editora Ravacini, jornalista e escritor.
"Tenho em mãos um manuscrito que me foi entregue em 2001, portanto, há vinte anos, pelo arqueólogo Domingos Casqueira, relatando a descoberta de um papiro dos primórdios do Cristianismo, o documento 'Q'. Gostaria de uma análise da parte de Vossas Senhorias, sobre os riscos de publicação desse material, tendo em vista processos por calúnia e difamação, uma vez que não é uma obra de minha lavra.
"Podemos marcar um horário? Que tal amanhã à tarde, às 14h30, no meu escritório? Estou na rua da Consolação, 9º andar, nº 919, bem próximo da vossa empresa."
"Cordialmente,
Olavo Ravacini, editor chefe."

Bruno concluiu a leitura, comentando:

— Tudo fake? Como pode? Uma armação?

Mário retomou a palavra:

— E o pior você não sabe... — Mário estufou o peito, em que havia muitos músculos para se mostrar: — Olavo Belo Ravacini de fato foi um jornalista, escritor e editor, proprietário da Belo Editora, fundada em 1990, com sede à rua da Consolação, 919, 9º andar... O CNPJ² dessa editora foi encerrado há vinte anos...

— Pera lá, você disse 'foi'?

— Sim, Bruno, pois Olavo Ravacini morreu em 2001!

De queixo caído, Bruno encarou Mário:

— Morreu? Como assim, morreu?

— Morreu!, num acidente de carro numa estrada de terra, em Congonhas, Minas Gerais, ano de 2001.

Bruno teve um choque:

— Não pode ser. Então quem era o Ravacini com quem conversei ontem?

— Alguém se passando por ele, óbvio. O verdadeiro Olavo foi mesmo um jornalista, editor e escritor, que fez sucesso em 1994, quando escreveu o livro "A Guerra no Mundo do Bicho". Ganhou o prêmio Jabuti por isso, mas morreu em 2001.

Bruno levantou-se, resoluto:

— Vamos ligar agora mesmo para o falsário! Eu tenho o Whatsapp dele.

Para novo espanto, não havia mais o logotipo da editora no perfil. Tentou ligar, sem sucesso. Enviou uma mensagem, que logo indicou "não visualizada". E assim permaneceu.

— Sem sinal de vida.

Como derradeira tentativa, pegou na mochila um cartão, buscando um telefone fixo. Colocado no viva-voz, obteve a seguinte mensagem: "Esse número de telefone não existe. Favor entrar em contato com sua operadora".

Entreolharam-se, sem saber o que dizer. Bruno quebrou o silêncio:

— Quer saber? Já basta! Estamos a poucos quarteirões da editora. Vamos lá agora!
----------
Nota:
¹
"Que a Morte os Separe", CBJE, 2007. Disponível na Amazon.
²CNPJ: Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas.

A Fonte QOnde histórias criam vida. Descubra agora