Prólogo

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O Reino das bruxas, duas semanas após o fim da guerra

A escuridão gostava de torturá-la repetidamente. Às vezes, ela apenas a forçava a assistir de novo a cena que já passara por sua mente tantas vezes, o suficiente para que ela se lembrasse de cada detalhe doloroso. Às vezes era pior. Quando ela parecia se deliciar por aumentar a dor dela, enfiando agulhas nas feridas que eram mais profundas.

Por favor.

A escuridão não escutava. Não se importava. Então invadiu a mente dela de novo, com sangue — vermelho, negro e azul, por todo lugar — espadas, luzes tão brilhantes quanto o sol. E depois somente cinzas.

As flores brancas nunca apareciam ali. Aquilo a fazia se perguntar se aqueles pequenos pontos claros de esperança foram algum tipo de sonho e aquela era a verdadeira realidade. Onde não existia depois. Onde não existia nada além daquele reino de cinzas.

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Manon Blacbeak Crochan, Rainha das Bruxas acordou. Apoiando as mãos trêmulas no tecido que cobria a areia, ela se sentou, tentando fazer sua mente parar de girar. Outro sonho.

Ela piscou, limpando as bochechas molhadas. Então correu os olhos pelo espaço apertado de sua tenda para voltar a realidade.

Elas tinham chegado nos desertos há poucas semanas, na antiga cidade sem absolutamente nada além de ruínas. As tendas foram o que conseguiram para abrigar tantas bruxas, até mesmo a Rainha. Não que Manon se importasse. O tecido incapaz de impedir o calor do dia ou frio que vinha com a noite era o menor de seus problemas.

Manon olhou para o canto onde estava sua pequena pilha de roupas, suas botas, sua espada. Sua coroa. Ela já tinha se acostumado com aquilo. A única coisa nova, que tinha mudado o espaço quando chegara há poucos dias, eram as cartas perto de seus pés.

Todas tinham praticamente o mesmo conteúdo: as narrativas surpresas e agradecidas dos pequenos acampamentos Crochan que vagavam pelos desertos, contando sobre os campos mortos e a areia que começaram a abrir espaço para a grama e as terras férteis.

Uma delas viera com uma pequena flor roxa, que a bruxa não jogara fora apesar de a planta já ter chegado murcha até ela. Era gêmea da flor que Manon tinha deixado em um campo arrasado em Terrasen.

Ela podia jurar que sua coroa brilhou mais forte por um momento. Como se as estrelas ali a ouvissem e quisessem confortá-la.

Besteira. Talvez o estresse tivesse começado a atingir o cérebro dela. Não levou mais que cinco minutos para que ela substituisse as roupas comuns que usava para dormir pelos couros de bruxa e pegasse suas botas e Ceifadora do Vento, um peso reconfortante sempre em sua cintura.

A areia já estava quente, embora o sol mal tivesse terminado de nascer. Era lindo, e talvez em outro dia ela tivesse parado para assistir o céu passar do negro para o laranja, até chegar em um azul infinito e sem nuvens. Não naquele, em que o pesadelo ainda estava sussurrando nos cantos de sua mente.

Abraxos se levantou rapidamente quando viu Manon do limite das fileiras de tendas, onde as serpentes aladas estavam dormindo. Como se sentisse como havia sido sua noite, ele envolveu as asas em volta da bruxa. Ela até sentiu vontade de sorrir. Ele parecia estar tentando abraçá-la, ou protegê-la do resto do mundo.

A bruxa encarou os olhos escuros que compartilhavam a dor dela por um momento, antes de amarrar as correias da sela. Os dois estavam nos céus poucos minutos depois.

Cada vez que voava, ela percebia mais a terra nascendo. Estava monitorando o rio que cortava a cidade das bruxas, embora o que passasse pelas ruínas não fosse mais do que pequenos filetes de água. Eram 20 minutos de voo até a parte mais funda, onde Manon conseguia ficar de pé e ainda assim não alcançar a margem. A água que passava por ali chegava apenas em seus joelhos por enquanto. Era o suficiente para que ela enchesse seu cantil, assim como o resto delas fazia.

Mas não era o suficiente para manter tantas bruxas por muito tempo, se o rio não voltasse ao normal logo. A única outra fonte de água era um oásis, a quase uma hora dali. Aquilo era mais uma pedra adicionada no topo de uma montanha de preocupações. Manon se perguntava quanto tempo demoraria para desabar.

A cidade estava acordada quando entrou em seu campo de visão. Centenas de bruxas saíam do círculo de barracas em volta das muralhas caídas para limpar as ruínas, achar estruturas que ainda podiam ser aproveitadas. Uma parte da cidade começava a tomar forma quando vista de cima. Algumas poucas ruas, alicerces de casas e o círculo da praça em frente ao castelo. O castelo dela. Ou que um dia seria, quando se tornasse um novamente.

Bronwen e Petrah se aproximaram antes mesmo de Abraxos aterrissar. A bruxa conteve a vontade de sair andando na direção oposta. As duas estavam sempre atrás dela, cada uma representando um povo — Crochan e Dentes de Ferro — com Manon no centro, representando os dois.

Ela as ignorava completamente.

Não que a Rainha não estivesse grata por tê-las ali. Ela simplesmente não conseguia olhar para trás e não encontrar Asterin e Sorrel.

As duas se entreolharam antes de segui-la para a praça central. Vinham se comunicando daquela forma desde que desistiram de arrancá-la do silêncio. Talvez estivessem até se tornando amigas. Manon sabia que não deveria se isolar daquela forma, mas ela não conseguia se importar o suficiente para fazer o contrário.

As três chegaram no centro da cidade. E ela tinha trabalho a fazer.

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A Rainha deixou a noite estrelada atrás do tecido da tenda quando desabou, exausta, em seu saco de dormir. Ela acrescentou mais cartas as que já estavam jogadas no canto. Dos mesmos acampamentos, dessa vez com alguns deles dizendo estar a caminho da cidade para ajudar na reconstrução. Ela não sabia dizer se aquilo a tranquilizava ou se a ideia de mais pessoas com esperanças e expectativas em relação à ela eram mais enervantes que a possibilidade de ajuda.

Glennis interrompeu seus pensamentos, surgindo do nada com uma tigela de ensopado que estavam comendo no jantar.

— O que foi?

A velha bruxa se ajoelhou ao seu lado, estendendo o ensopado para ela.

— Você não comeu hoje no jantar.

— Não estava com fome. —  Manon murmurou. Ela nunca estava.

— Também não comeu no almoço. E nem de manhã.

Ótimo. Ser vigiada como uma criança era tudo que ela precisava. A Rainha não respondeu, mas Glennis colocou a tigela em seu colo mesmo assim.

— Eu sei o que você está sentindo. Já vi isso muitas vezes, bem mais do que gostaria. — Uma onda de dor passou pelos olhos claros dela. Manon se perguntava se ela estava pensando em Rhiannon. — Mas todas elas, cada bruxa lá fora, precisam de uma rainha forte. Uma que trará nosso reino de volta. Não uma que um dia acabará caindo sem forças porque não está se alimentando.

Manon travou a mandíbula. Ela sabia que Glennis tinha razão. Isso não a impediu de continuar em silêncio.

— Você tem essa força dentro de você, Manon. E todos os reinos de Erilea, todos que venceram essa guerra sabem disso. Você sabe disso. E precisa encontrá-la de volta.

As palavras a perseguiram muito depois que Glennis apertou seu ombro, se levantou e saiu. Enquanto ela se forçava a engolir cada colherada de ensopado da tigela. Depois de ela já ter caído no sono.

Você tem essa força dentro de você. Para manter seus povos unidos. Para reerguer o Reino das Bruxas. Para não permitir que a própria dor a afogasse.
E precisa encontrá-la de volta.

Manon não sabia como. E os pesadelos não se importaram em lembrá-la disso.

𝐌𝐀𝐍𝐎𝐑𝐈𝐀𝐍- 𝐖𝐀𝐑 𝐎𝐅 𝐇𝐄𝐀𝐑𝐓𝐒Onde histórias criam vida. Descubra agora