O cheiro decrépito invadiu meus sentidos em uma lufada tão densa que se tornou impossível respirar.
Ao meu redor só havia escuro e podridão, mas estava debilitada demais para sair dali. A dor rasgou meus músculos quando tentei fazer o primeiro movimento e, ao olhar para o meu corpo a fim de entender a extensão dos machucados, constatei que apenas estar de pé já era muita sorte.
Eu estava completamente queimada. A carne avermelhada fundia-se com pedaços de tecido de minhas roupas, alguns pontos enegrecidos de onde saía uma densa fumaça escura que se perdia nas trevas do local onde eu estava.
Em um baque repentino, lembrei-me que precisava proteger Hector. Seu rosto era indistinguível, mas eu sabia que estava em algum lugar daquela escuridão, então desatei a correr no ritmo vagaroso que meu corpo carbonizado permitia. Como se em resposta à minha realização, escutei pela primeira vez os familiares rosnados das bestas reanimadas que habitavam o mundo. Não progressivamente, mas de um segundo para o outro, incontáveis criaturas se fizeram presentes com seus sons blasfemos como gritos saídos do inferno. Acelerei o passo e garras arrebentaram minha pele, transformando minha visão numa explosão vermelha.
Ainda assim, no fundo de todo aquele pandemônio, eu sentia a presença do meu amigo. Via alguns vislumbres por trás de rostos desfigurados de zumbis (alguns tão parecidos com pessoas que eu já amei...), mas como uma criança perdida entre formas sombrias, eu nunca conseguia alcançá-lo. O cheiro de podridão se intensificava e em determinado momento tive certeza que ele estava me envenenando, então minha única escolha foi tapar meu nariz e boca com as mãos.
Percebi algo escuro seguir o meu movimento, como se estivesse grudado ao meu corpo. Por um milésimo de segundo, ousei imaginar ser a carne carbonizada do meu braço se desprendendo dos ossos, mas teria sido bom demais. O horror da origem daquele aperto, cujas unhas cravaram-se na pele infeccionada do meu corpo, fez com que eu desejasse estar morta.
O braço preto de Klaus estava agarrado a mim em um aperto implacável.
Enchi meus pulmões até o limite com o ar fresco da manhã, como se aquilo me salvasse de um afogamento. Mesmo a visão do quarto semi-iluminado pelos raios de sol que passavam pela veneziana demorou para acalmar meu coração. Depois de vários segundos, percebi que meus braços doíam graças à força com a qual eu esmagava o lençol entre os dedos e exercitei o controle sobre meu próprio corpo, obrigando-me a soltá-lo.
Provavelmente havia acordado em um sobressalto, mas mesmo que o sono de qualquer sobrevivente tivesse se tornado leve por questão de sobrevivência, quem dividia a cama comigo já estava suficientemente acostumado com meus pesadelos àquela altura.
Seis meses haviam se passado desde o conflito na oficina, mas diferente da dor e do luto, que de maneira lenta, mas constante, desvaneciam, a tortura dos meus sonhos só se intensificara desde então. Quando minhas queimaduras, cicatrizaram e o insuportável peso sobre meu coração começou a ceder, eles vieram, com lembranças cruéis de cada violência cometida contra minha sanidade.
Foi graças a isso que comecei a evitar o momento de apagar as luzes e fechar os olhos. Graças a estas lembranças distorcidas que terminei buscando abrigo onde eu estava nesse momento, mesmo que esse costume não particularmente tornasse mais simples o momento após os pesadelos se dissiparem.
Respirei fundo, incapaz de decidir se era graças ao medo ou ao calor que uma fina camada de suor cobria meu corpo. Já estávamos no fim do verão, em março, e as manhãs começavam cedo. Fiquei em silêncio, mas quando não escutei nenhuma movimentação vinda do andar debaixo, deitei novamente a cabeça no travesseiro. Provavelmente ainda tinha algum tempo de descanso, o que sempre era apreciado, visto que a maior parte das minhas madrugadas eu passava tentando controlar a ansiedade após acordar de outro pesadelo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Em Fúria
HorrorLIVRO 3. Mais uma vez o mundo desmorona diante de seus olhos, mas agora Rebeca é uma pessoa diferente. Com um ataque inesperado, um único inimigo é capaz de trazer fim à paz que construiu atrás dos muros do condomínio e separá-la do seu grupo. Dess...