Capítulo 18.

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— Isso não acontecia desde que eu era criança, na verdade. — Samuel me explicava, sem tirar os olhos da xícara fumegante de chá a sua frente. Mesmo sendo verão, achei que poderia ajudá-lo a lidar com o assunto difícil. — Eu tenho sensibilidade a sons e situações estressantes no geral me impactam um pouco mais do que à maioria das pessoas, mas sempre trabalhei isso com a minha psicóloga, então aprendi as melhores maneiras de lidar com esses episódios. Quando vocês nos encontraram lá em Florianópolis, eu usava bastante o headphone porque ainda estava aprendendo a lidar com o apocalipse.

— Eu lembro. — Assenti, sem parar de mexer o arroz na panela.

A cozinha daquela casa era pequena, como todos os outros cômodos. Dentro dos móveis desgastados haviam poucas sobras de comidas não-perecíveis e tudo na geladeira precisou ser descartado. Samuel estava sentado numa banqueta na mesa redonda a poucos passos do fogão. Mesmo que estivéssemos no verão, o frio que eu sentia sugeria que seriam dias mais frescos daqui pra frente.

Se eu fosse sincera, ficar em pé não estava ficando nem um pouco mais fácil, mesmo que já estivéssemos ali há seis dias. A dor na costela tornava cada inspiração uma tortura e não parecia disposta a ceder, assim como o latejar na minha perna ferida. A extensão do corte exigia suturas para cicatrizar adequadamente, mas aquela casa não tinha as coisas necessárias para fazer pontos. Minha tosse incessante também não facilitava nada. Quanto mais rápido eu melhorasse para finalmente nos encontrarmos com o resto do grupo no hospital, mais rápido meus machucados poderiam ser tratados.

Samuel fazia algumas pausas longas, mas eu não o apressava. No quarto dia finalmente voltou a falar comigo, ainda que com poucas palavras. Com o passar do tempo, sua voz pareceu voltar completamente e agora me explicava o que havia acontecido.

— Então, com o apocalipse, eu fui obrigado a exercitar essas formas de controlar minhas reações. Conto a respiração, tento manter o foco nas tarefas diante de mim... e estava funcionando. Me desgastava um pouco, principalmente nos dias em que eu saía com meu pai, mas...

A voz dele falhou por um instante, provavelmente graças às memórias que a menção ao pai traziam. Meu coração doía sempre que eu lembrava que não servi de qualquer ajuda à ele durante o luto inicial. Constantemente imaginava Samuel, tão sozinho quanto eu me sentia, trancado em um quarto daquela casa desconhecida, sofrendo em silêncio pela perda do pai. Descontando em arranhões nos seus próprios braços, como as marcas vermelhas escondidas por gaze sugeriam. Aquela era a primeira conversa completa que tínhamos desde o dia em que chegamos, e fiz uma nota mental para me desculpar com ele por isso.

— Mas... eu conseguia não, sabe, ser um inútil para o grupo. — Ao ouvir isso, abri a boca na intenção de repreendê-lo por aquele pensamento, mas uma pontada na costela fez minha visão escurecer. Apesar da dor, obriguei-me a respirar fundo e me apoiei na bancada da cozinha. Samuel continuou apenas: — Só que o dia do ataque foi algo sem precedentes pra mim. A última vez que eu fiquei sem conseguir falar foi quando eu tinha 11 anos e minha avó faleceu. Só tinha acontecido uma única vez antes, mas foram momentos de muito estresse em que eu precisei "disfarçar" como eu me sentia. Eu não faço por mal, é só que depois, quando o peso do que aconteceu finalmente cai em mim, é como se eu não tivesse mais voz. Eu tentava falar com você, mas não saía nada. Naquele dia no condomínio, eu já estava muito mal por causa do barulho dos tiros, do medo e então... o que aconteceu com meu pai...

O relato foi substituído por fungadas de choro. Senti o coração apertar e meus próprios olhos ardendo, tanto pela dor que Samuel enfrentava quanto pela saudades que eu mesma sentia de Tom. Lembrei de quando visitei-o no hospital há apenas alguns meses e do alívio que senti quando soube que ele havia sobrevivido, algo que eu queria tanto sentir naquele momento.

Em FúriaOnde histórias criam vida. Descubra agora