Capítulo 37.

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Nenhum de nós estava esperando que houvesse uma lareira.

E, mesmo que eu jamais falasse em voz alta, aquela lareira a álcool que iluminava a sala de estar e aquecia a panela onde Paulina cozinhava cebola em conserva e carne enlatada, fazia a experiência de quase morte daquela tarde ter valido a pena.

Na verdade, talvez fosse o que todos estivessem pensando, pela tranquilidade em seus rostos. Samuel estava de olhos fechados e ouvia música pelos fones de ouvidos, no celular que Maitê havia lhe dado; Leonardo tirava um cochilo após seu banho (de água quente, graças ao chuveiro à gás do apartamento); Paulina escolhia cuidadosamente entre as opções de tempero disponíveis; e Maitê estava ao seu lado, fingindo interesse no que a mais velha fazia, mas evidentemente apenas tentando conseguir um pedaço de carne antes da hora.

Abri um sorrisinho, lembrando da minha primeira noite como sobrevivente, no apartamento de Melissa, junto aos outros que escaparam comigo do colégio. Era grande e chique como a cobertura que estávamos naquele momento e, de certa maneira, havia um mesmo gosto agridoce de medo e esperança no ar. Daquela vez, porque ainda não tínhamos ciência da extensão do apocalipse (e de que a ponte que esperávamos atravessar no dia seguinte seria dinamitada), mas estávamos cansados e orgulhosos por termos conseguido chegar em um local seguro. A diferença para a noite em Blumenau, era que o medo simplesmente havia se tornado parte de nós, enquanto o alívio em sobreviver mais um dia permanecia o mesmo. Principalmente, se coroado com um banho quente e um pouco de carne, dois luxos raros no fim do mundo.

Porém, aquela lembrança também me trouxe certa melancolia ao perceber que nenhuma das pessoas que estiveram na casa de Melissa estavam presentes naquele momento.Soltei um suspiro, que chamou a atenção de Paulina.

— Como você tá se sentindo, pirralha? — Era a forma carinhosa como ela chamava a mim e a Maitê. Para ser sincera, qualquer pessoa mais nova que ela. Leonardo, às vezes, ainda se atrevia a me chamar assim, mesmo com as encaradas feias que recebia. Na verdade, talvez fosse apenas um motivo a mais para continuar. — Dia difícil para nós hoje, ein?

— Paulina, o cheiro dessa carne tá fazendo valer até uma ida ao inferno — garanti. Então apontei com a cabeça para onde havíamos deixado os equipamentos de proteção. — Sim, mas pelo menos tivemos a chance de testá-los.

— E não é exagero dizer que salvaram nossas vidas.

Concordei com a cabeça, lembrando que, há poucas horas, as superfícies duras dos equipamentos foram o que nos salvaram quando estávamos sobrepujadas por zumbis. Roupas grossas normalmente faziam um bom trabalho, mas elas ainda podiam ser rasgadas ou erguidas no meio do combate, então mais segurança nunca era demais. Principalmente para os próximos dias, em que estaríamos expostos nas ruas.

Os equipamentos também eram vantajosos caso recebêssemos um ataque surpresa, como aconteceu no caminho até a cobertura do apartamento. Sem energia elétrica, os corredores e escadarias eram escuros como um breu e ficava impossível se movimentar sem uma lanterna — o que também nos tornava um alvo. Quando Leonardo foi atacado por uma criatura que parecia ter se materializado da escuridão, o capacete amparou a mordida que pegaria em cheio em seu rosto.

Era um pouco desestabilizante lembrar como chegamos tão longe e que, ainda assim, estávamos expostos aos mesmissimos perigos dos primeiros dias. Bastava um segundo de descuido para o nosso destino ser o mesmo de tantos outros sobreviventes que perdemos no caminho.

Mas se aquilo serviu para algo além de nos aterrorizar, foi para que Maitê entendesse a gravidade daquele mundo. Era natural que ninguém quisesse se responsabilizar por alguém tão nova e com uma deficiência que a deixava ainda mais vulnerável, mas nem eu ou Samuel achávamos justo não oferecer qualquer preparo a ela. Além do mais, era algo que ela queria e já fazia por conta própria, escondida de Jin e dos outros. Ignorar aquilo poderia apenas condená-la.

Em FúriaOnde histórias criam vida. Descubra agora