— Então, e que tal se conversássemos sobre o que aconteceu ontem? — Leonardo perguntou, a voz rouca de sono. Estava sentado no sofá da sala com uma caneca fumegante em mãos.
Tomei um gole do café preto, disfarçando a careta e desejando que Canela fosse uma vaca ao invés de um cavalo, para nos dar um pouco de leite fresco. Guilherme estava do meu lado, apoiado no balcão de mármore da cozinha.
— Ué, o que aconteceu ontem? — Ele perguntou e virou para mim com uma expressão falsa de confusão no rosto. Deixei um riso escapar e acompanhei o fingimento:
— Não sei, não faço ideia do que ele está falando.
Leonardo revirou os olhos, mas foi incapaz de disfarçar um sorriso, ainda que provavelmente nos achasse dois idiotas. Então olhou para o horário no relógio de pulso (que mesmo se não estivesse de fato correto, pelo menos estava sincronizado com os relógios que usávamos no condomínio), tomou o resto do café de uma vez e se levantou.
— Eu tô falando sério, Tico e Teco. — Ele caminhou até a cozinha e deixou a caneca na pia, que provavelmente ficaria ali pela eternidade. Como o corpo no celeiro. — Não é como se precisássemos assumir qualquer coisa, só não tenho paciência para fingir que nada aconteceu, e vocês dois são profissionais em resolver os problemas assim. — Desviei o olhar quando suas íris passaram de Guilherme para mim, incapaz de argumentar contra aquilo. — Eu gostei de ontem e me sinto bem tendo vocês por perto. Não ligo para o que outras pessoas possam achar. É isso, só queria ter certeza que vocês estão bem com tudo.
Tomei mais um gole de café enquanto refletia aquelas palavras. Sequer havia parado para pensar o que outras pessoas poderiam achar daquilo, completamente indiferente a qualquer coisa do lado de fora do meu paraíso particular.
— Ah, sei lá... Ainda tô processando tudo. — Enquanto respondia, Guilherme puxava os fios dourados da franja para prendê-los no meio-coque de sempre. — Mas, hm, acho que concordo com você... Parece o certo. Acho que é o suficiente.
Então os dois pares de olhos verdes caíram sobre mim e senti meu coração acelerar, mas não tinha nada a ver com o assunto em questão. Aquele tipo de proximidade era completamente novo ao mesmo tempo que parecia tão natural como se sempre tivesse sido o nosso normal.
— Hm, ainda não sei do que vocês estão falando. — Brinquei, deixando minha caneca vazia no balcão e seguindo para as caixas de mantimentos que faltavam ser levadas ao carro antes de partirmos. Somente depois de vários segundos, virei o rosto para trás e dei um sorriso sincero: — Mas eu mantenho as coisas que eu disse ontem.
Eu realmente os amava. Era incrível pensar naquelas palavras, repeti-las em voz alta e saber que eram recíprocas. Durante tanto tempo, afastei qualquer sentimento que pudesse me deixar confusa e tentei convencer a mim mesma que era apenas graças à nossa amizade que eu encontrava paz e segurança no contato com eles.
Ultimamente, tornava-se cada vez mais difícil sentir qualquer coisa além de uma constante preocupação e a antecipação pelo caos iminente. Eu sabia que assim que deixássemos aquele lugar, quando a realidade lentamente voltasse ao seu curso, a felicidade seria devidamente soterrada pelo medo. Era agridoce sentir algo tão bom em um mundo essencialmente sem esperança, mas eu era grata por aquelas horas em que tudo além da certeza de tê-los comigo se tornou irrelevante. Como se eu finalmente tivesse conseguido encher os pulmões de ar puro após meses perdida no vácuo.
Pensar no que outras pessoas poderiam achar era um pouco desconcertante. Eu tinha noção que já existiam murmúrios dentro do condomínio a respeito da proximidade que eu tinha com os dois garotos com quem já havia me relacionado (pois quando o apocalipse não traz surpresas desagradáveis, as pessoas tendem a ocupar a mente com banalidades, como fofocas e especulações), principalmente entre as pessoas mais velhas. Não era como se eu esperasse qualquer confronto, mas por muito tempo tive o privilégio de sequer imaginar que um relacionamento meu pudesse gerar opiniões contrárias.
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Em Fúria
TerrorLIVRO 3. Mais uma vez o mundo desmorona diante de seus olhos, mas agora Rebeca é uma pessoa diferente. Com um ataque inesperado, um único inimigo é capaz de trazer fim à paz que construiu atrás dos muros do condomínio e separá-la do seu grupo. Dess...