Capítulo 69.

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Como Victória me indicou, pelo resto da noite fingi que estava entregue a um sono profundo. O bisturi que ela me deu estava escondido na manga da minha blusa, gelado contra a pele, como uma lembrança contínua de que eu não estava a salvo — e que se não servia para me tranquilizar, pelo menos ajudava a afastar o sono.

Em algum momento da noite, reconheci pelos passos leves quando o doutor Isaías retornou ao meu quarto, sozinho. A porta ficou aberta durante toda a tarde, mas dessa vez ouvi um rangido que sugeria que ela fora encostada. Resisti ao impulso de pegar o canivete, apenas esperando e tentando manter a respiração estável para que ele não desconfiasse de nada. Pensei nas palavras de Victória, e imaginei o que a fazia sequer desconfiar que o médico podia fazer algo comigo.

Não ouvi mais do que o roçar de roupas com alguns poucos movimentos que ele fazia. Tranquei a respiração quando o senti abaixar o lençol e mexer na minha blusa, mas foi apenas para auscultar meu coração com o estetoscópio. Ouvi um murmúrio de aprovação e alguns segundos se arrastaram enquanto ele continuava ali, ao meu lado, mas nenhum dos sons que ouvi me denunciavam o que estava fazendo. Não demorou muito para que ele saísse da sala depois disso e, mesmo pelas pálpebras fechadas, percebi que a luz do corredor voltou a iluminar o quarto quando ele foi embora.

O soro que a enfermeira colocou depois de eu não conseguir comer (sem vomitar) continuava ligado ao meu braço e, por via das dúvidas, retirei a agulha. Ainda me sentia fraca e um pouco zonza, mas estava muito melhor do que antes. O canivete não havia perfurado nenhuma veia importante e apenas por isso eu estava viva. Além disso, tive a atitude correta em deixá-lo no meu pescoço e apenas imobilizá-lo com as ataduras. Apesar da perda significativa de sangue, foi possível que ele fosse completamente estancado e o corte, suturado. Eu também estava coberta de ferimentos menores causados pela batida de carro, mas nenhum muito grave.

Sendo assim, se fosse necessário, estava pronta para lutar pela minha vida.

Enquanto respirava fundo e tentava acalmar meu coração acelerado, pensei em Victória e na confirmação de que Guilherme e Melissa estavam bem... Dentro da bola de emoções que parecia entalada na minha garganta, havia um alívio indescritível em saber daquilo. Junto dele, uma dor quase agonizante de não poder me levantar e vê-los naquele mesmo instante.

Por que ainda não vieram me ver, se sabiam que eu estava ali? Será que estavam ocupados demais para isso? Ou talvez fora, em uma busca por mantimentos? A outra opção seria se Victória não tivesse contado para eles, mas eu não conseguia encontrar um motivo para isso... A menos que ela quisesse evitar que eu sofresse com a verdade enquanto estava me recuperando.

Aquele pensamento foi como um soco no estômago e toda a sensação de estar supostamente melhor se desfez conforme meu coração acelerou tanto que ficou difícil respirar. Nem um segundo depois, ouvi o eco de passos se aproximando no corredor. Mesmo que o que eu mais quisesse fosse me levantar da cama e fugir dali, ver que diabos de cidade era aquela e entender o que de fato estava acontecendo, engoli todos os meus instintos e fechei os olhos enquanto deitava a cabeça no travesseiro. O último movimento que eu fiz foi limpar uma lágrima que escorreu pelo meu rosto.

Não sabia dizer se era o pânico me deixando paranoica, mas tinha certeza que o som daqueles passos não eram os mesmos que os do doutor. Estavam mais altos e mais pesados, como os coturnos de alguém que não se importava em fazer silêncio em um hospital. Me movi o suficiente apenas para fazer o bisturi deslizar um pouco pela minha manga até que pudesse segurá-lo na mão. Sabia que era questão de tempo.

Na altura que ouvi os passos entrando no quarto, temia que todo o meu corpo estivesse tremendo demais para disfarçar. Sentia como se precisasse me fingir de morta diante de um urso conforme os sons se aproximavam sem qualquer hesitação. Apertei mais o bisturi, escondido pelo meu punho sob o lençol, e esperei.

Em FúriaOnde histórias criam vida. Descubra agora