A disputa começou!

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Eu não me lembrava de quase nada da minha vida antiga.

E quando eu digo quase, é realmente quase. Eu sabia algumas pequenas coisas e sabia os termos dessas coisas, como por exemplo que eu estava provavelmente sofrendo de uma perda de memória aguda seletiva e que isso poderia não ter reversão.

Como eu sabia desses termos técnicos? Era aí onde morava a ironia, eu não sabia como eu sabia. Mas eu sabia, ponto. Eu me lembrava também que eu sabia pilotar e fazia todo o sentido isso já que cai naquela cidade estranha e remota de um monomotor ultraleve, e, contudo, capaz de sobrevoar países se bem construído e cuidado. Como eu sabia daquilo também? Outra vez eu não sabia como eu sabia. A mulher que me salvou de ser engolido por uma poça de areia movediça na qual eu caí e meu avião foi quase soterrado e destruído, me disse que a queda deu para ser vista da cabana dela na praia do outro lado do manguezal.

Ou seja, a pane não foi coisa pouca o que significava que minha perda de memória pelo choque da queda fazia total sentido. A minha cabeça ainda doía se eu a movia rápido demais e minha queda já tinha dois dias.

Eu também não sabia meu nome, mas isso a simpática e bizarra senhora me ajudou me renomeando de Temps, abreviação de Tempestade porque caí em um início de tempestade que deixou o mar revolto e algo que aprendi com ela em menos de dois dias de convivência: Ventos realmente mudavam e podiam ser traiçoeiros.

Desses primeiros momentos com ela eu até que me lembro bem: ela me tirando entre os galhos do mangue, me arrastando para a cabana dela, me ajudando com os sangramentos e me dando remédios amargos e horríveis. No dia seguinte eu me sentia menos morto e caia em mim que não sabia quem era, onde estava e o que estava fazendo. Mas a mulher que me lembrava muito aquelas velhinhas místicas de contos de fadas me disse que eu não devia me preocupar, afinal eu finalmente uniria as três famílias que tinham divergências desde a fundação daquela cidade... Na realidade as palavras dela foram essas: "Você unirá as três famílias que possuem divergências há séculos, meu jovem rapaz, mas não se sinta pressionado com toda essa responsabilidade, pois seu caminho não será cruel e não haverá mais sofrimentos. Apenas siga o fluxo e tudo ficará bem".

Siga o fluxo, ela disse. Siga o fluxo... Isso foi algumas horas antes dela me convidar para ir pescar com ela em alto mar, ou o que eu achava que era isso porque a praia mal dava para ser vista de onde paramos, o que prova que de mar eu não entendia nada, e em seguida a velha bizarra me empurrar para a água e calmamente remar de volta, me deixando ali, em pânico, machucado e crente que eu ia me afogar.

Eu engoli muita água, me debati e finalmente afundei... Mas antes de apagar eu senti mãos puxando meu braço e me ressenti de confiar em velhinhas simpáticas.

A primeira lição que aprendi depois de 'tomar cuidado com velhinhas simpáticas' era: 'O azar e a sorte não podem ser distinguíveis quando você perde a memória'; e por que digo isso? Porque ao retomar a consciência eu me vi deitado em uma enorme cama que balançava suavemente enquanto sons de pássaros ressoavam do lado de fora.

Eu estava em um navio, um barco, em um sonho alucinado?

— ... Sim, claro sim, eu venho tentando fechar esse acordo há meses, Felix! Dê seu jeito!... Use o que precisar, faça o que tiver de fazer, não importa!... – A voz incisiva vinha de fora e por alguns momentos eu só pensei que ela soava agradável aos ouvidos, em seguida pensei por que diabos eu pensaria algo assim? Fazia sentido? – Exato! Use disso, pode dar bom. Ok.

A pessoa dona da voz que por alguns segundos de delírio eu achei agradável, entrou no quarto balançante em que eu estava e então eu me sentei na cama quase que por instinto, agora se era de fugir ou para olhar melhor eu realmente não podia distinguir, o fato era que o loiro que entrou era realmente algo a se descrever em detalhes: ele era alto, mas não em excesso, do tipo que precisava sim erguer a cabeça para olhar nos olhos, mas não a ponto de ter uma torcicolo. Havia um ar de ironia ao redor dele, mas também de certa agressividade, como algo selvagem impossível de ser domado, talvez. A camisa de gola aberta revelava a pele dourada, de quem habitualmente está exposto ao sol, mas sem excesso e o queixo era másculo, angular, mas sem ser agressivo. Ele usava bermudas, chinelos e aquela camisa, tudo e tons pasteis e mesmo assim parecia frio, cru, nada acolhedor e isso só se confirmou quando encarei os olhos dele... Gelados. Tudo era gelo, sem fundo, sem emoção... ele olhou para mim e eu para ele e era como mergulhar em um oceano profundo, silencioso e congelante.

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