Guilherme acordou em cima da hora. Já estava acostumado a acordar o mais tarde possível, caminhando sempre na linha tênue entre dormir um pouco mais e se atrasar para o trabalho. Dessa vez, ela tendeu um pouco mais para a segunda opção.
Com pouco tempo para se preparar, ele escovou os dentes, tomou um café morno e trocou de roupa rapidamente. Antes de sair, foi até o espelho e deu uma última ajeitada em seus cabelos com as mãos. Encarou com desgosto aquele colete azul que vestia, parte do uniforme da empresa. Desde os tempos de escola, ele nunca gostou da ideia de uniformização, pessoas utilizando exatamente as mesmas roupas, pois aquilo parecia apagar a personalidade de cada um.
Como um heroico gesto de rebeldia, o garoto pendurou em seu colete azul um broche que estampava uma feição risonha de Raul Seixas. Era seu toque pessoal ao opressivo uniforme de sua empresa. Rui, seu supervisor, que mantinha um ferrenho controle sobre a uniformização dos funcionários, disse que "para o Raulzão eu abro uma exceção" ao ver o broche do rapaz pela primeira vez.
Sem mais nenhum minuto sobrando, ele disparou em direção ao ponto de ônibus. No meio do caminho, se deu conta de que esquecera duas coisas importantes em casa: seu almoço e o carregador do celular. O primeiro, ele costumava levar apenas por motivos de economia, pois qualquer resto de comida caseira, misturada em um potinho e esquentada no micro-ondas do trabalho já evitava que ele gastasse dinheiro em um restaurante. Eram quinze reais preciosos, dado o reduzido salário do rapaz. Já o segundo esquecimento era mais grave. Seu velho celular já não aguentava com bateria por muito tempo. Verificou o aparelho e reparou que havia apenas trinta por cento. Como costumava ouvir música com o celular e seus fones de ouvido sempre que podia, essa quantidade de bateria não seria suficiente.
Pelo menos ele conseguiu chegar no horário. Fazia muito tempo que ele não se atrasava. Depois de algumas conversas com Rui, ele conseguiu, forçosamente, ajustar os horários de trabalho. Porém, sua expressão de apatia, cansaço e indiferença habituais pouco haviam mudado.
Apesar dessa aparência pouco convidativa, ele sempre era simpático com os clientes, apesar de os mesmos nem sempre retribuírem. Esse trato com os fregueses, aliado à nova disciplina com os horários, já havia rendido até alguns elogios de seu supervisor. Guilherme, já nos seus dezoito anos, tentava se tornar um adulto responsável. Mas sua preocupação no momento era outra:
– Ana, você tem carregador?
Ele estava em uma sala dedicada aos funcionários, onde guardavam seus pertences, iam ao banheiro, tomavam café e descansavam em seus curtos intervalos.
– Bom dia pra você também – a mulher respondeu sorrindo. – Pior que não. Já trago o meu carregadinho.
O garoto soltou um longo suspiro.
– Eu esqueci o meu – explicou-se, com uma voz quase inaudível de tão desanimada.
– Essa câmera pendurada no pescoço cê nunca esquece. Parece que é uma parte do corpo.
– Bem lembrado – ele retirou a câmera do pescoço e levou o até seu armário, guardando-a como sempre fazia antes do trabalho.
Ana sorriu ao ver o colega caminhando de sua habitual forma desanimada até o armário, como um robô com baixa energia, como fazia todo dia.
– Essa câmera aí já é meio antiga, né?
Guilherme, já colocando a câmera dentro do armário, parou por alguns instantes, enquanto sua mente era inundada por memórias.
– 2008 – ele respondeu, apenas.
– Agora que é um rapaz trabalhador, já pode comprar uma nova.
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Não Voe Perto Dos Prédios
Teen FictionNossa vida é uma sequência ininterrupta de eventos, do nascimento à morte. Nem tudo está sob nosso controle. Sejamos honestos, o controle sobre a vida não passa de uma ilusão que, mais cedo ou mais tarde, se esvai. Guilherme Barone Vasconcelos, no d...