Sônia gritava alguma coisa pela casa — não havia maneira pior de acordar. Já passavam das dez da manhã quando Guilherme abriu os olhos pela primeira vez nesse dia. Havia apagado por doze horas seguidas, depois de tomar uma dose extra de remédios para dormir — a única coisa que conseguia fazer sua mente descansar, mesmo que de maneira nem um pouco saudável.
Seus olhos pesavam como sua existência em si. Atirado na cama, inerte, não tinha a mínima vontade de levantar, como em todos os outros dias das últimas semanas. Quando acordava, já sentia vontade de voltar a dormir.
— Gui, levanta! Vem tomar café porque daqui a pouco já é hora do almoço! — Disse Otávio por trás da porta.
Enquanto o rapaz não encontrava forças para sair de sua cama, o mundo passava por um momento crítico. Um vírus terrível espalhava-se rapidamente pelo globo desde março desse mesmo ano, levando muitos a óbito. Só o Brasil, até esse dia, acumulava números de ultrapassavam os cem mil infectados, com mais de oito mil casos fatais. A doença atacava principalmente o pulmão, mas também causava inflamação em órgãos como rins, fígado, coração, entre outros. Era transmitida através do contato pessoal próximo, como toque ou aperto de mão, ou o contato com objetos ou superfícies contaminadas, seguido de contato com a boca, nariz ou olhos.
A indicação principal de organismos internacionais era o isolamento social, auxiliado por distanciamento seguro, uso de máscaras e higienização constante das mãos de dos ambientes por onde circulavam pessoas. São Paulo encontrava-se, nesse momento, em quarentena, decretada pelo então governador do Estado. Apenas serviços muito essenciais, como os de saúde e segurança continuavam funcionando.
Sendo assim, a padaria estava fechada fazia algumas semanas. Guilherme estava, há mais de um mês, convivendo diariamente e constantemente com seu pai e sua madrasta — que pareciam brigar e se desentender agora mais do que nunca. O shopping onde o rapaz trabalhava também estava fechado por todo esse tempo. Não que isso fizesse muita diferença, tendo em vista que ele havia sido demitido antes de a quarentena começar, devido à suas faltas e atrasos constantes após ter perdido contato com Clarisse.
Acontece que, desde aquele telefonema com o pai de garota, não havia conseguido mais encontrá-la de nenhuma maneira. Todo dia ele tentava pelo celular, mas havia sido bloqueado. Na primeira semana, ele foi à universidade onde a garota estudaria, e descobriu que ela não havia comparecido em nenhum dos dias de aula até então. Poucos dias depois, a instituição também fechou devido à quarentena, partindo para o ensino remoto. Criou novas contas em todas as redes sociais que conhecia, mas não conseguiu encontrar Clarisse em nenhuma delas. Também foi à terapia antes da quarentena, somente para descobrir que o pai garota havia ligado e avisado que ela não iria mais. Depois disso, ele também nunca mais compareceu ao consultório.
Soma-se a isso o fato de que não fumava nem bebia há mais de um mês. Com todos os estabelecimentos fechados, e sem a possibilidade de sair de casa, sua reserva particular de bebidas e cigarros acabou rapidamente. Diante disso ele teve de encarar, pela primeira vez, que era realmente viciado. Guilherme sempre agiu como se fumar e beber fosse algo natural, mas não obrigatoriamente uma necessidade. Achou que poderia ficar sem as substâncias que lhe auxiliavam a inebriar sua realidade, mas foi muito mais difícil do que imaginou.
Sofreu com dores de cabeça e ansiedade por várias noites seguidas. Suava frio, tremia, acordava no meio da madrugada de pesadelos horríveis, tinha crises de tosse e seu estômago revirava. Não conseguia focar sua mente em nada real por mais de vinte segundos. O resultado disso foi que teve de aumentar as doses de seus remédios para dormir.
Resumidamente, ele estava preso em casa, com o pai e a madrasta brigando constantemente, em abstinência de álcool e nicotina, sem contato com a única pessoa que lhe fazia ter vontade de viver, desempregado e profundamente deprimido. Havia perdido três quilos no último mês. É importante levar em consideração que Guilherme já era, antes disso, muito magro. Sua situação era tão crítica que Otávio estava profunda e genuinamente preocupado.
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Não Voe Perto Dos Prédios
Novela JuvenilNossa vida é uma sequência ininterrupta de eventos, do nascimento à morte. Nem tudo está sob nosso controle. Sejamos honestos, o controle sobre a vida não passa de uma ilusão que, mais cedo ou mais tarde, se esvai. Guilherme Barone Vasconcelos, no d...