Guilherme acordou de súbito. Engoliu em seco, esfregou os olhos e buscou seu celular pela cama, tateando-a como se não enxergasse. Apesar de ter dormido pouco esta noite, um pesadelo envolvendo Ângela o fizera despertar de seu costumeiro estado de sonolência da manhã. Ao encontrar o celular, percebeu que eram seis e vinte da manhã – dez minutos antes do horário que realmente deveria acordar.
Olhou para o teto por alguns instantes. Enquanto sentia seu corpo dolorido e cansado, trechos do pesadelo percorriam sua mente. Não se lembrava dos detalhes, mas não conseguia esquecer a imagem do rosto de sua mãe se decompondo rapidamente diante de si. Fruto de um subconsciente perturbado, não era a primeira vez que essa cena o atormentava, nem seria a última.
As olheiras profundas já eram, praticamente, parte de sua feição natural. Não dormia uma noite de maneira adequada há anos, literalmente. Apesar de seu sono ser pesado, conseguir dormir era uma grande dificuldade. Além disso, seus horários desregulados e os frequentes pesadelos quase impossibilitavam aquela rotina de sono indicada pelos médicos.
Para fugir dos resquícios do pesadelo que o perseguiam, decidiu verificar as notificações dos aplicativos de seu celular, afinal, ainda tinha alguns minutos antes de ter que realmente levantar e correr para não se atrasar. Quando abriu o aplicativo de mensagens, se deparou com o seguinte texto, enviado no grupo de comunicação de seu local de trabalho:
03/08/2018 06:11
Rui Gerente:
O Badeaux Rede de Varejo, em nome de toda a sua equipe e funcionários, manifesta profundo pesar pelo falecimento da nossa colaboradora Ana Mendes Garcia, que foi a óbito na noite desta quinta-feira, 2 de agosto. Diante desta perda irreparável, oferecemos todo o apoio e solidariedade à família e amigos, em reconhecimento aos serviços prestados a esta empresa.
Sua respiração parou por alguns instantes. Ele pulou subitamente na cama e sentou-se na mesma. Encarou o celular por alguns instantes e leu a mensagem novamente. Teve a sensação de que aquilo não era real, como se fosse mais um pesadelo do qual acordaria a qualquer momento. Sentiu um vazio aterrador ocupar seu peito. Incrédulo, leu a mensagem mais uma vez. Estavam lá, as mesmas palavras, nada havia mudado. Era real. A respiração acelerou-se e o ar parecia não chegar em seus pulmões. Com a visão turva, foi acometido de uma tontura, largando o celular e apoiando-se na cama com as duas mãos.
Colocou os pés no chão, sentindo o piso frio. Apertou as pálpebras e notou que suas mãos tremiam. Fragmentos de pensamentos cruzavam sua mente, enquanto, em choque, levantou-se, foi até o banheiro e escovou os dentes, como se fossem atos automáticos. Sem comer nada, ele vestiu uma roupa qualquer, colocou seu colete azul, e saiu porta afora, rumo ao seu ponto de ônibus, como se tivesse anestesiado. Os pensamentos ainda não se organizavam em sua mente, enquanto seu corpo balançava, sentado no banco de plástico de um transporte público decadente. Com olhos vermelhos e marejados, encarava a janela fitando absolutamente nada. Sua respiração estava perceptivelmente fora de ritmo, enquanto fechava seus dois punhos com força.
Se por um lado, o choque o impedia de pensar e sentir plenamente aquele momento, por outro lado ele fugia de todos os pensamentos que se organizavam em sua mente, como se não quisesse encarar o que havia acontecido. Contraditoriamente, ele desceu do ônibus e caminhou pelo supermercado adentro, como se quisesse tirar a prova, verificar se aquilo tudo era real ou apenas mais um pesadelo torturante de uma mente conturbada. Em seu âmago, já sabia a resposta.
Passou pelos corredores do estabelecimento e viu que algumas pessoas já trabalhavam, preparando-se para o início das atividades, que se daria em dez minutos. Entrou na sala dos funcionários, mas não tinha nada para guardar no armário. Não trouxera nem sua câmera. Olhou ao redor e viu que outros dois funcionários estavam ali, se preparando para o expediente. O silêncio pesava sobre os presentes. Quando enfim ficou sozinho, ele pegou o celular e olhou o grupo novamente. Havia mensagens como "meus pêsames", "que notícia triste", "vai deixar saudades", enviadas nesse mesmo grupo por colegas de trabalho.
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Não Voe Perto Dos Prédios
Genç KurguNossa vida é uma sequência ininterrupta de eventos, do nascimento à morte. Nem tudo está sob nosso controle. Sejamos honestos, o controle sobre a vida não passa de uma ilusão que, mais cedo ou mais tarde, se esvai. Guilherme Barone Vasconcelos, no d...