A pandemia de coronavírus alcançava seu ápice até o momento no Brasil. A média móvel de mortes — média de mortos por dia dos últimos sete dias — havia alcançado mil óbitos diários. O número total de mortos já estava alcançando quarenta mil. Mal sabiam as pessoas que isso era só o começo. Carregavam falsas esperanças de que tudo se resolveria até o final do ano.
Porém, uma certa parte da sociedade não parecia se incomodar muito com a situação. Alguns achavam que era tudo um grande exagero da mídia, um alarde sem necessidade. Outros defendiam que os números eram mentirosos, inflados por médicos e hospitais que buscavam receber mais verba do poder público para o combate do vírus. Alguns, inclusive, sentiam sua liberdade ameaçada quando eram obrigados à usar máscara para entrar em lugares fechados e achavam que esse era o ponto mais importante e relevante para se discutir diante de uma pandemia mortal.
Algumas dessas pessoas estavam reunidas, neste dia, na casa de Guilherme. Apesar de ser feriado, a data também marcava o aniversário de 67 anos de Dona Silvia, a matriarca da família Vasconcelos. E não havia nada mais sensato a se fazer em meio à uma pandemia que ceifava milhares de vidas do que uma comemoração do aniversário de uma idosa hipertensa, com aglomeração familiar e sem nenhum tipo de medida de proteção.
Guilherme estava jogado na cama, destruído pela semana de trabalho. Ele havia se tornado o que mais temia: funcionário da padaria de seu pai. Havia começado há duas semanas, e trabalhava seis horas por dia, conforme o permitido pela legislação que regulava o comércio no período pandêmico.
Estava fazendo terapia com um psicólogo que lhe atendia a partir de uma plataforma digital, por meio de ligação de vídeo, uma vez por semana. Foi a alternativa que Otávio conseguiu encontrar tendo em vista as restrições do período em que viviam. O problema era que o psicólogo — conhecido do homem e cliente da Sonora Pães — disse ao rapaz que seria bom se ele se ocupasse, trabalhasse, ganhasse um pouco de dinheiro e independência novamente e não passasse o dia inteiro em casa naquele ócio potencialmente destrutivo. Diante da dificuldade em encontrar emprego durante a crise econômica que se instaurava com força no país, Guilherme se viu obrigado a aceitar a proposta que seu pai praticamente lhe forçou goela abaixo.
Agora, ele acordava antes das cinco da manhã todos os dias, trabalhava o dia inteiro com Otávio e Sônia e ainda voltava com eles depois disso. No auge dos seus vinte anos, já tinha independência o suficiente para conquistar alguns pequenos intervalos, como ir até a rua e fumar um cigarro. Sabia que Otávio abominava aquele cheiro e tudo mais que envolvia o ato de fumar, mas não se importava, era o único anestésico que tinha para aguentar trabalhar no último lugar do mundo no qual gostaria de estar.
Com essa rotina cansativa, física e psicologicamente, Guilherme encontrava-se abatido em sua cama, de onde não pretendia sair tão cedo. Se não fosse pelo aniversário de sua avó.
— Gui, levanta, eles já tão vindo e eu já tô indo buscar sua avó. — Disse Otávio através da porta.
O rapaz murmurou algo em resposta ao pai. Procurou o celular pela cama e viu que ainda eram dez da manhã. Considerou que era praticamente um crime ter que se levantar da cama nesse horário em um dia que não trabalhava. Arrastou-se até o banheiro e tomou um banho, na tentativa de estar minimamente apresentável quando seus parentes chegassem.
Com o inverno chegando, a água do chuveiro precisava estar mais quente. Guilherme jogava seus cabelos ondulados para trás, enquanto deixava o líquido morno escorrer pelo seu rosto. Respirou fundo e abriu os olhos, vendo o vapor quente tomar conta do banheiro inteiro. Pensava sobre decisões importantes.
Na noite passada, Otávio havia perguntado sobre o futuro do rapaz, suas intenções e perspectivas, e confirmou que ele não tinha absolutamente nenhuma. Guilherme tentou explicar um pouco o desânimo esmagador que sentia. Otávio também perguntou sobre Clarisse, e confirmou suas suspeitas de que algo estava errado. A conversa foi vaga, um pouco fria e distante. Apesar de estar se esforçando para entender, o pai de Guilherme não conseguia alcançar os sentimentos do rapaz.
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Não Voe Perto Dos Prédios
Teen FictionNossa vida é uma sequência ininterrupta de eventos, do nascimento à morte. Nem tudo está sob nosso controle. Sejamos honestos, o controle sobre a vida não passa de uma ilusão que, mais cedo ou mais tarde, se esvai. Guilherme Barone Vasconcelos, no d...