Parte 9

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O caminho para a revista naquela manhã foi silencioso apesar do barulho ensurdecedor do trânsito de NYC. Não era todo dia que eu tinha o privilégio de poder ignorar qualquer coisa que me incomodasse, mas me preparei o suficiente para conseguir fazer isso tanto com os sons externos, quanto com meus pensamentos. Eu não queria que Miranda me afetasse tanto, mas agora que aconteceu não tem nada que possa ser feito além de continuar vivendo a minha vida e buscando formas de voltar a ser eu mesmo: aquele que despreza Miranda Priestly e não precisa vê-la por várias horas do dia.

Enquanto isso não acontece, continuo usando minhas habilidades para fingir demência.

— Tem certeza que você consegue fazer isso?

— Já se passaram três dias, Em. É mais que o suficiente.

— Eu nunca vi você daquela forma, Andrea. Para ser bem sincera, nunca sequer imaginei que isso aconteceria. Então, sim, estou bastante preocupada.

Emily se preocupava demais. Eu entendia, é claro. Nos conhecemos há... o quê? Há mais de dez anos? E em mais de dez anos ela nunca me viu externando sentimentos amorosos. É compreensível.

— Em, eu sei dos meus limites, tá bom? Mas, se algo acontecer, eu vou correndo pra sua sala. — Ela me observou por alguns segundos sem sequer piscar enquanto segurava firmemente minha mão. — Eu prometo, Em.

Ela suspirou aliviada com minhas últimas palavras e finalmente soltou minha mão.

— Assim está bem melhor. Apesar de você nunca ter prestado, também nunca quebrou uma promessa.

Ela saiu do carro após proferir aquelas palavras e eu revirei os olhos, entregando algumas notas ao taxista.

— Pode ficar com o troco.


Tocando: Take My Breath Away - EZI

Desde que decidiu assumir sua "forma feminina", Andrea não tinha se importado tanto com aparências, ainda que Emily a ajudasse e insistisse que precisava se encaixar no ambiente da revista. Contudo, tudo que aconteceu com Miranda fez com que algo maior despertasse dentro dela. Era isso que as mulheres faziam quando tinham o coração partido? Mudavam sua aparência? Andrea não sabia bem se iria funcionar, mas, com certeza, se sentia melhor.

Sua franja estava mais curta e reta, cobrindo a testa. Havia cortado um pouco no cumprimento e repicado levemente as pontas. A cor estava a mesma, mas o corte foi o suficiente para fazê-la se enxergar melhor no espelho. Naquele dia em especial, decidiu que usaria todas as armas que tinha. Ela não queria que Miranda lhe notasse, mas queria que ela sentisse ao menos um pequeno incômodo ao perceber que Andrea seguiu em frente (mesmo depois de ter desaparecido por três dias por causa da decepção que a mais velha lhe causou).

Andrea vestia alta costura. Investiu uma grande parte das suas economias naquelas peças com a ajuda de Emily que parecia conhecer por nome e sobrenome todos os gerentes de todas as lojas da Gucci, Prada, Louis Vuitton e todas as suas variáveis. Não demorou até seu carro estar abarrotado de sacolas e seu guarda-roupa não ter mais uma única peça masculina, a não ser pelas camisas largas e cuecas que usava em casa. Ah, sim. Por mais que dissesse que nunca usaria calcinhas, Emily a fez comprar algumas há algum tempo e até que não eram tão ruins. Normalmente usava as maiores, que pareciam cuecas, mas de tecidos bem mais delicados e confortáveis. Tinha até algumas cuecas de renda. O universo feminino é cheio de incríveis variáveis!

Ela chegou no Elias Clarke mais cedo que de costume e rapidamente caminhou para o interior da Runway ouvindo Emily falar apressadamente sobre como ela deveria agir numa situação como aquela. A amiga teve o coração quebrado o suficiente para criar um protocolo de emergência específico para lidar com diversas situações provindas de um "pé na bunda". Uma delas era ignorar o outro como se ele fosse apenas um enfeite sem muito valor. Estranhamente, Andrea se lembrou de momentos em que Emily tratou Andrey assim e fez um careta. 

— Participarei de reuniões durante toda a manhã, mas almoçamos juntas, pode ser?

Andrea assentiu para Emily enquanto respirava fundo e tentava esconder o nervosismo. A amiga fazia o possível para mantê-la distraída, mas não surtia muito efeito. De toda forma, Andrea lhe dirigiu um grande sorriso ao ouvi-la contar uma história engraçada sobre um pequeno desastre que aconteceu no closet da revista num dos dias em que Andrea não foi trabalhar.

— Tenho certeza que você conseguiu contornar perfeitamente a situação. Ninguém melhor que você para lidar com desastres.

— Eu que o diga.

O corredor parecia mais lotado que de costume. Por um momento Andrea se perguntou como é que isso era possível, mas então se lembrou que a próxima edição seria lançada dali a quatro dias. Aquele lugar devia estar definitivamente uma loucura, o que seria bom para ajudá-la a manter-se ocupada e longe de qualquer vestígio de Miranda Priestly.

Ao menos era o que ela pensava.

De dentro da sua sala, Miranda a observava atentamente com um pequeno bico nos lábios e algumas rugas se formando em sua testa ao tentar entender o que ela estava vestindo. Seus dedos seguravam de forma despretensiosa os óculos de grau, mantendo uma de suas alças entre os lábios rosados. Ela conheceria qualquer peça daquela há quilômetros de distância, mas nunca viu Andrea usar algumas das mais caras como naquele momento. Se surpreendeu, é claro. Eram de muito bom gosto!

Especialmente aquela bota cano alto Gucci que fazia suas pernas parecerem ainda mais longas.

A editora-chefe só percebeu que segurava o ar nos pulmões quando Nigel se materializou ao seu lado e tocou em seu ombro, fazendo-a se assustar.

— Vejo que a mudança repentina da Six te agradou.

Miranda melhorou a postura e arrumou os cabelos após abandonar os óculos sobre a mesa, pigarreando antes de dizer qualquer coisa. Provavelmente sua voz denunciaria um certo incômodo que deixava seu corpo inquieto.

— "Six"?

— Ah, é apenas um apelido carinhoso. Nada demais.

O silêncio fez com que Nigel continuasse a falar, afinal, Miranda não tinha tempo para conversas despretensiosas em semana de fechamento.

— Bom, eu trouxe o livro conforme me pediu e confesso que fiquei surpreso com algumas mudanças. Não querendo ir contra seus apontamentos e sabedoria, mas acredito que...

E a partir dali Miranda não ouviu mais nada. Seus olhos estavam fixos em Andrea. Não conseguiria lembrar das anotações do livro ou formular alguma frase de ofensa a Nigel nem mesmo se quisesse. Andrea, por sua vez, mantinha-se de costas para a sala de Miranda. Ela não sabia que estava sendo observada, mas Emily sim, e esta fez questão de manter a amiga ali o máximo que podia apenas para que Miranda admirasse o que havia perdido. Talvez até que Miranda perdesse o fôlego pela primeira vez na vida. 

Upside Down | Em revisãoOnde histórias criam vida. Descubra agora