(...) farei o possível para não amar demais as pessoas, sobretudo por causa das pessoas. Às vezes o amor que se dá pesa, quase como uma responsabilidade na pessoa que o recebe. Eu tenho essa tendência geral para exagerar, e resolvi tentar não exigir dos outros senão o mínimo. É uma forma de paz...
LISPECTOR, Clarice. Minhas Queridas. Editora Rocco, 2007.
Amar é um deslocamento, é uma turbulência que nos move em corpo, gesto, alma e sentimento, é um viver que nos lança à beira do infinito e é possível sentir-se eterno quase que instantaneamente na medida em que se ama, porque o amor tem essa mania bonita de nos fazer sentir como se ele fosse estável e permanente, assim como nós. Mas o amor não é. Sabe o ser, mas também sabe desvencilhar-se dessa infinitude eterna e nos pregar peças cruéis onde o olhamos, o vemos e não somos capazes de alcançá-lo. O amor também sabe o que é não amar.
Jacqueline acordara aquela manhã sentindo-se profundamente indisposta, era como se carregasse o peso do mundo em seu corpo, que relutava até em mover-se debaixo daqueles lençóis que lhe abraçavam a pele, sentia-se em um refúgio particular e não queria renunciar àquela segurança. Os dias nem sempre eram de felicidade como costumavam ser, Jacqueline se habituara a essa nova realidade, onde vez ou outra se dava ao luxo de ser gente e não editora chefe de uma revista, se permitia sentir e chorar e repensar sua existência, se dava a oportunidade de olhar para sua casa, para sua filha, para seu marido e para sua própria alma, que doía aquela manhã; e assim se caracterizavam essas manhãs de se dar ao luxo de algo: doses homeopáticas de dores e sentimentos condimentados em um corpo cansado de ser forte o tempo inteiro.
A mulher deixou que seus pensamentos voassem, permitiu que fossem mais livres do que nunca aquela manhã e, para sua surpresa, não pensou em Giorgio, que estava há quase quatro dias fora de casa e não lhe enviara uma mensagem sequer, não sentiu o peito apertar ao relembrar a traição, não sofreu com vozes lhe dizendo que aquela viagem era só mais um pretexto para estar com outras mulheres. Não. Giorgio não era mais o inquilino que alugava um espaço em sua mente, esse lugar fora preenchido por outra pessoa, por uma imagem muito mais suave, tranquila e sedutora, que não lhe dava um segundo sequer sem reluzir em meio aos seus pensamentos.
Giorgio era um espinho cravado em seu peito, mas uma rosa vermelha desabrochava sobre ele, exalando um perfume incomparável e uma beleza impossível de não ser notada ou admirada.Jacqueline não podia resistir em pensar em Katherine, o que aquela jovem estava fazendo com seu coração? Não conseguia conceber um olhar tão doce e delicado sobre si, um cuidado tão terno e uma sutileza que beirava uma sensação inominável de estar lendo uma das mais belas poesias só de vê-la passar. Seu corpo reagia instantaneamente à presença da mais nova, suas pupilas dilatavam, o coração tornava-se descompassado, a pele arrepiava e as bochechas coravam... Katherine estava aos poucos se tornando um ponto de fragilidade de Jacqueline Carlyle e ainda que ela conseguisse mascarar muito bem esse seu senso de perdição, internamente, sentia o deslocamento que só aqueles olhos castanhos dela estavam sendo capazes de causar.
- Estou ficando louca. Completamente louca... estou perdendo o senso por uma jovem escritora que nem sequer tem certeza do que vivenciou comigo aquela noite. – A mesma sussurrava para si mesma com a voz abafada pelo travesseiro. – Não posso fazer isso. Não posso estar me apaixonando por Katherine...
Mas se o amor é sorrateiro e chega sem anúncio prévio, a paixão é uma prima rebelde e inconsequente que não mede prejuízos, só quer viver e não importa como, ela não pode ser evitada, não pode ser parada, é um mar revolto em tempestade contínua, turbulência de marés. A paixão é irremediável. E Jacqueline sabia; e dar-se conta de estar apaixonada já era a constatação de que não haveria mais volta: seu corpo era náufrago e iria se perder naquelas águas desconhecidas que eram Katherine LeBlanc.
(...)
Katherine acabara de sair do banho, sentou-se ainda enrolada na toalha sobre o sofá e resgatou a xícara de café que já estava ali antes, checou algumas mensagens no celular, rindo de algumas provocações feitas por Jane, que após saber dos últimos acontecimentos não parava de falar sobre Katherine e Jacqueline e a oportunidade única dela se permitir vivenciar aquela situação. Respondeu a mensagem da amiga e como resposta imediata seu celular vibrou, anunciando uma chamada de vídeo. Katherine atendeu de prontidão, sabia que viriam mais provocações, mas estava de bom humor.
- Oie, minha mais nova princesa do vale!!! – disse sorridente e de forma provocativa.
- Ai, Jane... você adora me provocar, né? Eu já te disse que não sou gay. Um beijinho em uma mulher não me faz menos hetero que antes. – disse com os olhos semicerrados.
- Vou fingir que você nem disse isso, Katherine LeBlanc. Até porque não foi um beijinho, né... Mas enfim. Amiga, falando sério agora, eu tenho te provocado e brincado muito, mas eu sei que todo mundo tem seu tempo para entender as coisas. Sei que talvez você demore um pouco para... reconhecer. – a amiga expôs compreensivamente.
- Eu sei, Jan... eu sei... Só é tão... diferente. De tudo que já vivi, eu jamais esperava ter estado com uma mulher e... ter gostado. Admitiu para a amiga e para si mesma. – Eu preciso confessar... ela é encantadora, tão doce e cuidadosa, desde o dia em que cheguei na Scarlet ela foi gentil comigo e isso amoleceu meu coração. Percebi que todos os dias estava saindo de casa ansiosa para vê-la e quando a via... meu coração palpitava. – A voz de Katherine foi reduzindo consideravelmente enquanto confessava seus sentimentos em alto e bom som, não estava ali confessando algo para Jane, estava confessando para si mesma. Dizer era tornar real algo que ela estava tentando manter aprisionado.
- Kath... você está se apaixonando. E precisa deixar seu coração entender isso. Precisa respeitar esse sentimento que é genuíno, porque está aí gritando dentro de você, existe, Kath, o sentimento existe. – a amiga expressou docemente.
- Mas eu não sei o que fazer sobre isso, Jane. Não sei nem por onde começar. Não sei como agir, não sei como olhá-la nos olhos, sinto que nos precipitamos aquela noite e agora tenho vergonha até de ficar sozinha com ela. Como vou me deixar sentir isso estando com tanto medo? – suspirou pausadamente. – Mas ao mesmo tempo... sempre que ela se aproxima, meu corpo reage instantaneamente. Sinto que se eu fosse o super-homem ela seria a minha kryptonita. – Riu baixo, fazendo a amiga gargalhar igualmente.
- Depois você ainda vem dizer que não é gay... – riram ainda mais após o comentário. – Ai, Kath! só deixa as coisas acontecerem como tiverem que acontecer e se abra para isso. Convide ela para tomar um café, não sei. Ou dê algum espaço para ela se sentir confortável em te convidar.
- Está bem. Acho que vou pensar nisso, talvez você não seja uma conselheira tão ruim assim. – zombou.
Após mais alguns minutos de conversa encerraram a ligação, Katherine seguiu com seus afazeres, mas um sentimento confortável lhe invadia o peito, uma sensação de estar viva e poder viver intensamente essa vida que lhe fora concedida com todas as suas surpresas e imprevisibilidades. O coração estava aberto, com a chave na porta e sem medo de ser invadido ou violado, era uma incerteza meio certa de que a próxima pessoa a adentrar ali não faria de seu peito uma grande bagunça.
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Por trás de seus olhos
FanficJacqueline Carlyle é editora chefe da Revista Scarlet, uma grande influência no mundo jornalístico. Uma mulher que inspira coragem e luta por aquilo que acredita, sem medo de correr riscos. Mas os dias da editora estariam prestes a mudar após a cont...