Tourne-toi, mon amour

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"Guarda estes versos que escrevi chorando,
Como um alívio a minha saudade,
Como um dever do meu amor; e quando
Houver em ti um eco de saudade,
Beija estes versos que escrevi chorando."

- Machado de Assis


Como se rompe um laço que foi dado de dentro pra fora da gente? Como se cortam linhas invisíveis tecidas na alma? Jacqueline se perguntava, há uma semana, que erro gravíssimo havia cometido em vida a ponto de ter que pagar nesta mesma. Primeiro, um casamento de 17 anos desfeito, por traição, desamor, descaso e uma quase violência. Depois, um chuvisco de vida pingando no árido campo de seu coração, chuvisco que foi secando lentamente, te dando esperanças de que ele sozinho daria conta de fazer florir amor em seu peito de novo. Pra sua surpresa, esse chuvisco foi se tornando um punhado de tantas outras gotas, até se tornar uma nascente e ir fluindo por dentro de todo o seu ser, inundando-a por completo.

Mas tão rápido quanto a inundação, veio a seca, e a dor daquelas rachaduras que iam se formando diante da aridez insistente, foi a tomando outra vez, cruel e incessante como um verão nordestino. Katherine havia partido, sem adeus, sem um último olhar e muito menos sem um último beijo, e seu corpo doía de saudade, dos toques, das carícias, dos carinhos e singulares momentos que tiveram juntas. Pensa todos os dias no infeliz momento em que a olhou como se ela fosse Giorgio, capaz de destruí-la e trai-la enquanto a olhava nos olhos dizendo amar.

Retomou seu trabalho na Scarlet e tudo parecia normal, se não fosse pela ausência gritante dela, o vazio de sua mesa, que a editora não ousou ocupar com outro corpo; passava horas observando a cadeira desocupada e vez ou outra tinha o vislumbre de vê-la ali sentada, com seus olhos trocando faíscas e desejos. Quando a noite caia, ela era a última a deixar o escritório, perdia infinitos minutos sentada na cadeira que fora de Katherine, lia os post-its com anotações que ficaram, uma caneta rosa cheia de corações que ela levava para todas as reuniões de pauta e uma pequena foto, com um sorriso largo, pendurada por um alfinete no canto da mesa.

Aquela noite, em especial, a dor parecia doer ainda mais, era o aniversário de Katherine e tudo que ela queria era poder ouvir sua voz e desejar-lhe de lábios colados um feliz aniversário. Queria pungentemente sanar aquela falta de tato e olfato. De lhe embalar o corpo nos braços e sentir seu perfume tão singular. Outra vez, fim de expediente, sentou-se à mesa de Katherine, sozinha, e outra vez leu as mesmas anotações, observou a mesma foto e analisou a mesma caneta.

- Você sente falta dela, não é? - Uma voz irrompeu o silêncio tão particular de Jacqueline, que se assustou e levantou em um pulo só.

- Ai, meu Deus Kat, você me assustou. Achei que todo mundo já tinha ido embora.

- É, na verdade, sim. Mas acabei esquecendo de te entregar isso. - a jovem diretora de mídias se aproximou e estendeu a mão, entregando à chefe um livro.

- O que é isso?

- Era da LeBlanc, ficou em uma das gavetas dela e como eu precisei tirar os pertences que ficaram, a pedidos do Rh, acabei guardando algumas coisas, caso ela volte...

- Certo. E por que está me dando isso?

- Bom, talvez você goste da leitura... - Disse apenas, se retirando logo em seguida.

A editora observou a capa, era um livro de poesias, de Vinicius de Moraes, certamente um dos autores que Katherine gostava, ao menos teria um vestígio dela somente para si. Sentou-se novamente na cadeira e abriu a primeira página e logo viu um pequeno papel branco despencar, recolheu o bilhete abrindo-o logo em seguida:

- 37 rue Vaugelas, 74000, Annecy França. Tel: 0800-703-2111.

Observou o papel por alguns segundos, sem entender do que se tratava, talvez alguma das tantas anotações de Katherine, o endereço de uma amiga ou familiar. Dobrou o pedaço de papel e se deparou com a folha do livro em que ele se encontrara, o peito doeu diante das palavras. E como se a vida estivesse lhe dando outra chance, ela compreendeu. Annecy era a cidade natal dos pais de Katherine, certamente aquele era o endereço da casa deles e um provável telefone. Ponderou, mas o coração palpitava, as mãos suavam e o estômago revirava. Levantou-se e seguiu até seu escritório, retirou o telefone do gancho e discou o número sem pensar mais. A chamada tocava e tocava... uma, duas três... até que de repente ouve-se o barulho na outra linha. Jacqueline sentiu o peito se apertar e o ar parecia ter fugido completamente de seus pulmões.

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