Não saímos ilesos do amor

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Nao há ser que ouse passar pela terra sem amar, nem sempre por escolha, nem sempre por vontade própria. Mas não saímos ilesos de nos apaixonar, de amar e, muitas vezes, sofrer por esse mesmo amor. E qual a cura para um coração ferido? Um novo amor? O amor próprio? Eu não sei. E acho que ninguém sabe. Não há regra, não há receita. Não tem um remédio que se intitule "a cura para corações partidos". Quando um coração é partido, por mais que se tente remediar e colar seus estilhaços, um pedaço sempre é perdido, sempre há uma ferida que eternamente ficará aberta. E, sim, o tempo se encarrega de remendar essas fissuras que alguém causou, mas o peito sempre irá arder, sem perceber.

Katherine sentia que uma fissura, mais uma vez, havia sido feita em seu coração. Mas dessa vez era diferente, a sensação era de não haver remendo, não podia só costurar um retalho enquanto o sangue ainda espirrava a cada batida em seu peito. Podia fingir que não, mas o sangue não tem um pigmento muito disfarçável, era marcante, e ela estava marcada por ele. Quem a visse, saberia. A jovem escritora se deixou apaixonar pela editora da maneira mais avassaladora e repentina que pode, também, pudera, a mulher era encantadora e ao mesmo tempo possuía uma fragilidade para além da pose de editora que a tornava ainda mais humana e palpável. Mas eis o ponto que Katherine não sabia não estar preparada para conhecer na outra muher: sua humanidade.

Ser humano é ser consequentemente falho, ser bom e mal, ser feliz e triste, ser cheio de amor e um completo vazio. É complexo ser humano por si só e lidar com a complexidade do outro é ainda pior. E nem sempre estamos prontos para compreender a bagunça que quem amamos também pode ser.

Ser humano é tambem saber que nada é para sempre e que às vezes as coisas se encerram sem nem ter começado. É inexplicável viver. Às vezes uma mãe é privada de ver o primeiro sorriso do filho, em algum momento um jovem não poderá ir à própria formatura, de repente uma neta nunca irá conhecer a avó, um tio nunca abraçará o sobrinho, um amigo não fará uma festa surpresa, um professor não dará dez para aquele aluno. Talvez um amor nunca aconteça, porque subitamente… vidas são suspensas sem que possam ser finalizadas. Sonhos são capturados pela imprevisibilidade da vida. E não há nada que se possa fazer.

Enquanto Jacqueline dirigia até a casa da jovem escritora, sua amada adentrava um avião com passagem só de ida. Seus caminhos já não se cruzavam, pelo contrário, iam se descolando aos poucos na linha do tempo, que não garantia as unir outra vez, mas isso, somente ele, o tempo, seria capaz de dizer.

Na porta, uma, duas, três, quatro batidas. E como resposta? O completo silêncio que reverberava do apartamento vazio. Ou seria do próprio coracao da mulher ali parada?

- Katherine, oi... Sou eu, Jacqueline. Me atende, por favor. Eu só quero conversar com você. Eu te devo um pedido de desculpas. – Deixou a mensagem na caixa postal após as tentativas, também falhas, de uma ligação.

Não... não saímos ilesos do amor. Mas amar é bom. Apesar de nem todo amor ter sido feito para ser vivido.

Jacqueline passou aquela tarde tentando se ocupar de trabalho, mas era impossível não pensar na jovem. Olhava o celular a cada cinco minutos e suas mensagens não chegavam. Não eram visualizadas e muito menos respondidas. A ansiedade não era um sentimento comum na vida da editora, apesar de noites sem dormir esperando respostas do ex marido. Não era a mesma coisa. Esperar por uma resposta de Katherine não era como esperar por uma mensagem de Giorgio. Precisava dela. Como nunca precisou dele.

Horas e horas passadas. Silêncio era a única coisa que a mulher conhecia naquele dia. O sol começava a se pôr e seu expediente chegava ao fim, anunciando que o trabalho já não lhe daria mais refugio; ia ter de encarar outro vazio: o de seu apartamento; com peças de roupa da jovem que ficaram por lá, com o seu perfume que ainda era possível sentir na fronha do travesseiro. Era como se ela estivesse impregnada em cada canto, do chão às paredes. Katherine fugiu, mas Jacqueline não tinha como. Parte dela ainda estava consigo, não só na casa, mas também na pele, na mente, no coração... na alma.

- A culpa é minha. Eu sei... eu não mereço seu perdão, mas por favor... ao menos me deixe falar com você. Me deixe pedir desculpas por ter duvidado, por ter te acusado injustamente. Querida, me atende... – Aquele era o decimo áudio deixado nas mensagens para Katherine, ou talvez o vigésimo, a editora já não contava, assim como não contou a quantidade de taças de vinho que virou de maneira displicente.

- Katherine, por favor. Não me castigue assim. Não me castigue com silencio. Isso dói, muito. E eu sei que eu fiz isso primeiro, mas eu só quero ouvir sua voz, eu só quero te abraçar e dizer que a amo e nunca mais vou acreditar em outra pessoa ao invés de você. Meu bem... eu sinto tanto a sua falta, por favor, me perdoa, vem ficar comigo...

Sim, o álcool pode humilhar até as pessoas mais confiantes e determinadas, até as mais coerentes e controladas, Jacqueline já não tinha dimensão de suas palavras, só as colocava para fora exatamente como lhe surgiam na mente.

E o silêncio, de perturbador, se tornou confortável para lhe abraçar após tantas taças de vinho, e no dia seguinte, certamente ele também seria seu melhor aliado devido à enxaqueca que sentiria. O sono lhe tomou as forças e ela adormeceu segurando o celular, com a taça sobre a cama e com a camisola de Katherine no próprio corpo, como se ela ainda estivesse ali, junto de si.

Mal sabia a mulher que a jovem não a ignorava por opção, mas por estar no avião com os dados desligados. A mente da jovem escritora também voava, talvez mais alto que o  pássaro de ferro que a carregava. Não sabia se estava tomando a decisão certa, mas decerto sentia que precisava se recolocar dentro de si mesma, reajustar os sentimentos, o próprio discernimento que lhe foi arrancado por uma loira de um metro e setenta. O avião a levava de volta ao seu ninho, às suas origens, o único lugar onde sabia que podia recarregar suas energias, se olhar de dentro pra fora e se encontrar de novo. Sarar aquela ferida que se abriu no peito.

Voltava para Annecy, uma cidadezinha no sudeste da França, onde seus pais nasceram e lá vivem ate hoje; ao menos sua mãe. Seu pai havia falecido há dois anos. Apenas sua memória habita o lugar. E talvez a memória que Katherine tinha de Jacqueline também pudesse ficar lá.

Quiçá Freud estivesse certo quando disse que a melancolia e o luto são emoções e reações que se assemelham à perda. No luto, decididamente há uma presença que se vai e na melancolia há também uma falta, uma falta que nem sempre é do outro, mas de nós mesmos. E a melacolia também vem de mãos dadas a outros sentimentos, aqueles que não se concretizaram, aqueles que foram cortados ao meio e também nos partiram junto.

Talvez Freud não tenha pensado nisso, mas no fundo de Katherine e Jacqueline, o amor também poderia vir junto da melancolia, não o amor genuíno e eterno, mas aquele que morreu sem dizer adeus, deixando apenas um fio de saudade e o cheiro de vida interrompida.

Então, não... não saímos ilesos do amor. Ainda que amar seja bom. E ainda que nem todo amor tenha sido feito para ser eterno.





Ando meio fatigado de procuras inúteis e sedes afetivas insaciáveis.

Meu coração tá ferido de amar errado.

Acho espantoso viver, acumular memórias, afetos.

É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado.

Tô exausto de construir e demolir fantasias. Não quero me encantar com ninguém.

Quem diria que viver ia dar nisso?

Mas sempre me pergunto por que, raios, a gente tem que partir. Voltar, depois, quase impossível.

Loucura, eu penso, é sempre um extremo de lucidez. Um limite insuportável.

Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra.

A gente se apertou um contra o outro. A gente queria ficar apertado assim porque nos completávamos desse jeito, o corpo de um sendo a metade perdida do corpo do outro.

-Caio Fernando Abreu

 

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