3. FORA DO COTIDIANO
Foi mais uma noite de sono leve, não antes de mais doses de "Intervenção Coronária". Após ela dormir, sentei na varanda e devorei as páginas. Mantive o foco, pois quanto mais rápido, mais tempo sobraria para começar aquele verdadeiro quebra-cabeça que estava na minha frente. Ou melhor: ao lado, na cama, dormindo feito uma pedra.
Continuei a registrar tudo, eu disse tudo, sobre ela. O que começou como uma ficha sobre seu estado físico, agora era ampliado com cada atitude, cada lembrança e minhas hipóteses. E alguns rabiscos do seu semblante.
Se no início daquela noite meus parceiros de Cardiologia eram os doutores Harvey Feigenbaum e Hein Wellens e seus artigos, no fim, era apenas ela: aquela figura pálida, sem jeito, toda sem graça, e de olhos curiosos que estava ocupando meu velho leito. Notava como seus pés ainda estavam inchados. Dois montes finos, rosados, mas sem feridas. Esfreguei minha cabeça e ri sozinho da minha própria ironia, torcendo para aquilo ser a razão dela andar de forma tão desajeitada. Levantei, olhei mais de perto e vi que alguns arranhões estavam sumindo. Aquilo poderia ser explicado pela sua longa caminhada com direito a tombos, como ela mesma contou.
Com a face escondida atrás dos longos fios, admirei aqueles cabelos castanhos, que no sol pareciam ruivos, de tão claros. Apesar de sempre desarrumados, até tinham lá a sua graça. Pensando bem, ela tinha lá a sua graça. Foi, sem dúvidas, o acontecimento mais interessante dos últimos meses. Ou anos. Quem espera que uma estranha caia do nada na sua cama? Sempre fui de ficar sozinho, só que agora estava gostando da companhia.
Não sou nenhum vidente e esperava estar completamente errado, mas analisando tudo, creio que aquela estranha, minha hóspede, quase foi mais uma vítima.
Acho que levaria alguns dias até tirar o atraso do cansaço. E, sendo otimista, algumas semanas para se recuperar do possível trauma que provavelmente passou. Eu acredito que ela sofreu uma amnésia psicogênica retrógrada, pelo que conversamos e o que eu estudei. Sentia constantemente que a perda de memória estava roendo ela por dentro, isso não conseguia esconder naquele olhar de garota curiosa. Entretanto, ela ainda não sabia o quanto aquilo estava me preocupando também.
Yellow Woods e outras pequenas áreas de Washington estão sob constante ameaça. Angustiava-me ver aquela gente carente vivendo como uma bomba pronta para explodir a qualquer momento, em qualquer lugar. Mas eu já imaginava quem estava por trás daquilo e estava cada vez mais certo do passado que aquela estranha poderia ter.
Confesso que, no início, agi por impulso e pena. Eu senti que ela correria perigo se qualquer outra pessoa a encontrasse. Ao ver aqueles olhos famintos e quase mortos, minha coragem falou mais alto do que o receio de me comprometer com o bando dos podres, e decidi ajudar. Não queria, não quero vê-la morta. A cada momento que passava, aliás, sentia que queria a garota viva. O instinto de ajudar pode até ter vindo da minha carreira, mas já sentia algo diferente por ela. Amizade, cumplicidade, sabe-se lá o nome que deveria ter.
Para mim, sua defesa virou questão de honra.
Eu iria ajuda-la.
*
Não sei como o sono dela estava, mas o meu foi curto e grosso. Três horas depois, eu já estava de pé nas almofadas que improvisavam uma nova cama no chão, e ela ainda estava hibernando, como já era de se esperar.
Saí sem fazer barulho, não queria acordar a Bela Adormecida. Ou seria Branca de Neve? Sei lá, não entendo desses contos idiotas. Só sei que ela, naquela manhã, realmente parecia alguma personagem clássica, tamanha era a sua tranquilidade.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Memories (Truth or Dare?)
FanfictionA jovem Isabella perdeu a memória. Após passar dias vagando fraca e sem rumo por florestas e estradas desertas, o misterioso Edward salva sua vida. Ele lhe oferece abrigo em sua cabana secreta, e aos poucos os dois descobrem em uma inocente e leal a...