capítulo 2

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Quando minha carruagem finalmente parou de balançar incessantemente na estrada, eu sabia que a hora havia chegado.

Meu destino eminente estava prestes a ter início.

Respirando fundo para acalmar os meus nervos, observei enquanto um servo abria a porta da carruagem e fazia uma reverência
com sua postura impecável.

- Chegamos a fronteira de Lores e Rosália, Vossa Majestade. Sua comissão de boas vindas está pronta para lhe receber.

Lady Caroline encostou levemente sua mão na minha em um gesto discreto de apoio, distraindo meus pensamentos incessantes por alguns segundos. Sorri agradecida para minha amiga, devolvendo o toque carinhoso.

Tentando sustentar a postura fria e aristocrática que fui instruída a manter durante toda minha vida, olhei para minhas damas de companhia, que me observavam atentando esperando instruções.

- É hora de cumprimos nossos deveres. - Falei estoicamente, aceitando de queixo erguido a mão estendida do lacaio para me ajudar a deixar a carruagem.

Pela Deusa Criadora, eu estava realmente fazendo isso.

[...]

Após desembarcar nas fronteiras, fui recebida por uma pomposa comitiva composta das damas de mais prestígio da corte de Rosália e as sacerdotisas mais estimadas entre a realeza, meticulosamente selecionadas para realizar o ritual matrimonial rosaliano.
Elas estavam organizadas em uma fileira perfeita, todas com aparências impecáveis e rostos sérios cobertos de severidade. Elas tinham a postura de um soldado prestes a entrar no campo de batalha, tão milimetricamente instruidas de como se portar quanto um militar.

É enervante estar diante de tanto rigor.

Me aproximei em passos calmos e elegantes, forjando em cada movimento uma confiança que não sentia de verdade enquanto elas analizavam cada detalhe em mim.

Quando cheguei próxima a elas, a linha de frente se dispersou com maestria e sincronização em duas fileiras simétricas, formando um corredor de damas para minha passagem. Uma sacerdotisa vestida de branco assumiu a liderança, ficando bem no meio entre as duas linhas paralelas de aristocratas. A mulher se curvou no chão em uma reverência à sua futura rainha, e só se levantou depois do que pareceu uma eternidade. Ao ficar de pé, a sacerdotisa segurou um cesto de flores que eu não havia reparado que ela carregava, e lentamente começou a cobrir de pétalas multi coloridas todo o caminho no qual eu passaria.

- A corte de Rosália recebe com urgulho a sua futura rainha, Amberly Bovary. Abençoada seja pela Deusa Mãe Criadora, Vossa Majestade. - Disse a sacerdotisa, seguida por todas as outras damas ali presentes.

Segui meu caminho até o rio que nos aguardava, coberto de uma espessa camada de neblina e cercado por mistério.
O rio Bona atravessa todo o continente da Lua Crescente, e é considerado um rio de águas sagradas, abençoado pelas grandes deusas. Alguns acreditam que tem propriedades curativos, de renovação espiritual e física.

Fui simbolicamente despida de minhas vestes por minhas damas de companhia, me deixando totalmente nua diante das águas sagradas. Duas mulheres usando vestidos brancos esvoaçantes seguraram minhas duas mãos, guiando meus passos lentos em direção à margem.

Quando finalmente chegamos ao começo do rio, elas me deixaram ali e não ousaram encostar na água. Continuei andando até chegar em uma parte mais profunda do rio, onde quase não conseguia me manter de pé.

Às mulheres ao redor da margem começaram a entoar cânticos harmoniosos às deusas, me estimulando a ir cada vez mais fundo nas águas.

Soltei uma respiração que não havia reparado que estava prendendo todo esse tempo, então mergulhei dentro da água num gesto rápido e habilidoso.

Nadei desesperadamente, tentando com todas as minhas forças chegar até a parte mais profunda daquelas águas. Havia uma necessidade implacável no meu peito, um chamado que exigia ser atendido imediatamente.
Naquele momento, eu esqueci que era apenas uma mortal. Eu não precisava respirar, não precisava de mais nada além de suprir a urgência gritante que vibrava por todo o meu corpo.
Sentindo aquela magia esmagadora cada vez mais forte, finalmente alcancei o fundo, mergulhando em um abismo tão profundo que fazia meus ouvidos zunirem por causa da pressão.

Deixei meu olhar varrer o ambiente ao meu redor, todo o esplendor que me cercava. Agora eu realmente entendia por que isso era sagrado, por que tantas pessoas mergulhavam nessas águas em busca de orientação espiritual. Esse lugar é a coisa mais magnífica que eu já vi em toda minha vida.

Tesouros antigos cobriam boa parte do chão, o acúmulo de séculos de oferendas as deusas, junto com esqueletos humanos daqueles que foram amaldiçoados por tentarem roubar de seus presentes.
Nossas Deusas nunca foram conhecidas por sua misericórdia, elas são seres divinos implacáveis e justas, abençoando aqueles que as adoram e destruindo violentamente todo aquele que se levanta contra elas. Essas pessoas foram tolas o bastante para tentar tirar delas, por isso receberam tal destino.

Esse lugar fazia com que eu me sentisse tão mais leve, tão em paz. Como se toda e angústia e tormenta em meu coração tivesse sido tirada do meu peito pelas mãos das Grandes Deusas.

Mergulhei mais fundo, me deliciando com a sensação maravilhosa que me estava sendo proporcionada. Minha mente clamava para que eu ficasse mais, que permanecesse ali. Mas eu já não tinha forças o suficiente para continuar indo mais além na escuridão.

Contrariando o chamado em meu coração, nadei de volta até a superfície, flutuando nas águas sagradas enquanto cânticos eram entoados ao meu redor.

Levantei do rio cristalino devagar, encarando com a postura ereta todos os olhos que estavam fixos em meu corpo complemente desnudo e exposto.

As sacerdotisas me aguardavam na margem, com um longo roupão de linho preparado para que eu me cobrisse. Assim que cheguei até elas, permiti que a vestissem em meu corpo, aceitando de bom grado a peça bela e delicada.

- Por favor, permita que eu te guie até sua cabana, Majestade. Suas damas a aguardam para te vestirem e ajudarem a se preparar para a chegada à Rosália, Alteza. - A líder das sacerdotisas disse de forma amena, se curvando em uma reverência.

Assenti em resposta, a seguindo até a enorme cabana de tecido a alguns metros de nós.

Os louvores às Deusas não haviam cessado completamente, algumas das jovens garotas ainda cantavam graciosamente enquanto carregavam incensos de lavanda e andavam em círculos ao redor do terreno.
Elas cantavam com adoração, de maneira tão bela e sentimental que era possível sentir toda a angústia e tragédia que haviam nessas letras em cada fibra do meu coração. Elas falavam sobre sonhos perdidos, vidas infelizes e amores impossíveis. Eram tristes, trágicas até.
Era irônico que fossem músicas escolhidas para abençoar uma união matrimonial.

Quando finalmente terminei de ser vestida por minhas damas, pude contemplar meu reflexo diante do espelho. Meus cabelos cor de cobre jaziam presos em um coque gracioso, com apenas algumas mechas soltas na franja. O vestido em que fui vestida era de um verde liso tão intenso quanto o dos meus olhos, com um decote profundo em formato redondo para destacar meus seios e saia modesta, sem muito volume ou enfeites.

Tudo em mim agora parecia tão tradicionalmente rosaliano, muito diferente da forma como eu me vestia até poucas horas atrás. Essa era apenas a primeira mudança de muitas que ainda viriam em minha vida, constatei com certo receio.

herdeira de fogoOnde histórias criam vida. Descubra agora