Capítulo 1

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Eu queria ir para casa. Fazia muito tempo que almejava isso. Na verdade, parecia que estava esperando esse momento desde que abandonara minha tenra idade, quando o universo perdeu as cores da infância e foi aos poucos se tingindo com as maldades do mundo. E o dia de livrar-me de tudo isso simplesmente nunca chegava. Na verdade, eu apenas descobria que o cinza podia ser mais cinza.

Talvez fosse esse desejo arrebatador o combustível que me fazia caminhar sem rumo pela cidade naquele momento. Uma espécie mórbida de carvão para um maquinário desistente.

O senhor Arnóbio Castelo queria que eu ficasse com ele na sua cobiçada - e, eu diria, supervalorizada - loja de tecidos. Com sua fachada gloriosa, ninguém poderia imaginar onde se encontravam suas raízes podres. Talvez por isso eu tivesse o péssimo hábito de fugir de lá sempre que podia. E também por que matar as horas com ele não era lá muito agradável. Meu pai não era exatamente a espécie agradável.

E desde que pusera os pés no Brasil outra vez, ele não perguntava aonde eu ia ou o que fazia, sequer se importava, penso, já tinha de mim as glórias que desejava: um ex combatente vencedor na maior guerra que nosso mundo já viu. Parte daqueles que libertaram a Itália. Era assim que ele propagava minha imagem aos filhos de Eos. Talvez fosse melhor do que dizer que eu era um baderneiro que fugia das responsabilidades para vadear a capital e suas vielas mais miseráveis. Um dia, ele certamente quereria que eu pusesse os pés no chão e ocupasse o seu cargo com meu empório, mas até lá, eu continuaria fugindo.

Passava do ponto alto do sol quando cruzei uma rua em que algumas crianças passavam carregando seus cadernos e lápis, brincando e rindo entre si. Por um momento, notei a rua ao meu redor. As pessoas que antes mais se assemelhavam a vultos, ganharam formas e cores, as placas das lojas invadindo o cenário tinham nomes grandes em formas diversas, o burburinho era latente, tantas vozes e sons diferentes que se misturavam de um jeito quase indecifrável, os sons dos sapatos, das conversas, dos anúncios, rádios, o bonde passando. Todo aquele caos ressurgiu de forma desconfortável. Forcei-me a despistar da rua para as crianças que passavam na porta da sorveteria com música alegre. O garotinho mais calado entre eles me fez ficar estático por alguns segundos.

Ele parecia estar se divertindo com os outros, prestava atenção nas coisas que uma das outras crianças falava. Parecia maior do que na última vez que o tinha visto, mesmo que não tivesse tanto tempo assim e certamente muito diferente daquela foto em que o vi pela primeira vez.

A lembrança era nítida. Os rapazes sentados com suas latas e colheres, conversando como se o mundo não parecesse estar acabando. Eles falavam por quem voltariam.

Pessoalmente, eu não gostava daquele rapaz desde que o vira no trem de partida, mas naquele dia em que ele tirou a foto do bolso e mostrou para todos nós na roda com visível orgulho e amor, falando das pessoas na moldura como eu nunca vira ninguém na minha família falar de qualquer pessoa... foi quando comecei a me questionar, por um breve momento, se as coisas que aprendi não estavam erradas.

Finalmente, objetivei um lugar para onde ir naquela caminhada tão distante da lembrança. O mundo havia sumido em vultos e sussurros outra vez. Meus passos tomaram um destino, afastando-se das crianças, tornando-se rápidos e precisos pelos paralelepípedos. Estava terrivelmente quente, enfadante. Acho que havia desacostumado com o clima do Rio.

Depois de mais alguns terços de hora pelas ruas, cheguei aos portões de ferro branco em que alguns pontos de ferrugem se espalhavam aqui e ali brotando como gotas de sangue em tecido claro: crescentes e gritantes. Estava entreaberto à espera de visitantes e lágrimas. Entrei.

O espaço não era por si só desagradável. Árvores frondosas cresciam imponentes, erguendo-se do chão com a solidez de prédios, espalhando suas sombras ao longo de um gramado verde, algumas coroas e buquês de flores murchos, permitiam que apenas diminutos raios solares alcançassem as lápides. Não havia ninguém ali além de mim e dos pássaros com sua canção de março. Um contraste estonteante com a monotonia do cenário. Estava tão vazio que o som dos meus passos pelo caminho de tijolos lembrava o soar de um tambor profundo.

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