— Conseguiu, né? — Bonifácio perguntou, na manhã do outro dia, quando surgiu para buscar mais papéis.
— Hum?
— Resolveu as coisas com a sua garota.
— Ah, sim.
— Dá para ver pelo tamanho do sorriso na sua cara.
— Nós vamos ficar juntos... Mas seus pais nem sequer podem imaginar isso.
— Relaxa. Vou te ajudar a encobrir, ninguém vai descobrir, não. — Ouvimos passos apressados subindo a escada e mais rápidos que eles Bonifácio mudou de assunto. — Pois é rapaz, o filme é muito bom. Se você quiser, saio com você para assistir no sábado, vai ter outra sessão dele.
— Senhor Hélio. — Era Jamily, sempre correndo, mas nem sequer parecia cansada. — Tem ligação para o senhor.
Olhei para Bonifácio com as sobrancelhas curvadas em confusão.
— Obrigado, Jamily. — Um filete de surpresa explorou seus olhos, tão parecidos com os da irmã, antes que ela apenas anuísse e descesse para suas atividades.
Segui até a sala onde tinham instalado o telefone com Bonifácio em meu encalço, esperando com certa agitação a conversa para ver no que daria. Antes de pôr o telefone no ouvido, me assentei sem presa na cadeira da mesinha telefônica, o que só deixou meu primo mais ansioso. Eu poderia ficar provocando ele por horas, mas o telefone estava me chamando há um bom tempo já.
— Alô?
— Hélio? — A voz de minha mãe era inconfundível.
— Pois não, mãe?
— Ah, finalmente! Como é bom ouvir sua voz, meu filho. Desculpe por não ter ligado antes, aqui tudo estava meio caótico.
— Não tem problema. — Ela suspirou do outro lado, com um ritmo de compasso exaurido.
— Por acaso não há ninguém minimamente eficiente na casa de sua tia? Tem bem quinze minutos que estão protelando para que eu consiga falar com você. Já estava ficando preocupada!
— É que eu estava trabalhando. Acabei demorando para chegar no telefone.
— Trabalhando? Pensei que tivesse ido aí para descansar. — E eu gostaria de responder que só fui porque meu pai me obrigou. Mas não disse nada, pois lembrei-me que de outro jeito não teria conhecido Jacinta. Ao fim das contas, terminou sendo bom.
— O que foi, mãe? Por que me ligou?
— Que grosseria, Hélio, já vi que a viagem não surtiu efeito, bem que avisei ao seu pai, mas ele nunca me escuta. Só liguei para saber como está meu filho. Não posso?
— Pode, mãe, — Respondi, um pouco pesado de falar com ela. Bonifácio revirou os olhos e gesticulou que partiria. Acenei. — apenas é adverso.
— Adverso? Uma mãe querer saber como vai seu único filho acaso é uma adversidade? — Aquilo atingiu o resto de minha paciência. Meus pais tinham essa habilidade formidável.
— Mãe, a senhora me mandou exatamente três cartas durante todo o período em que estivesse em expedição na Itália, não venha fingir de apegada. Por fim, vá direto ao ponto, diga o que quer de uma vez.
— Gostaríamos de saber quando pretende voltar. — Ela emendou, sem mais pormenores.
— Não sei exatamente... Em uma estação, talvez duas.
— Duas estações?! Pretende morar aí agora?
Quis responder que essa era assertivamente minha pretensão. Ficar ali, continuar no emprego desproposital na biblioteca, encontrar uma casinha simples e me casar com Jacinta.
— Vocês disseram que eu podia ficar pelo tempo que desejasse. Estou... — Ali perto, Jacinta tirava poeira da mesa, aprontando ela para a próxima refeição. Ah, se minha mãe soubesse a história toda... — gostando daqui. Está me fazendo bem. Quero permanecer mais um pouco.
— Bom, ficaremos satisfeitos se ao voltar, você estiver revigorado, mas esperamos que se cure mais rápido. De qualquer forma, o importante é que volte. Seu pai está com certos planos para você.
— Que planos?
— Ele quer te introduzir na administração da loja. Você sabe, é bom começar a aprender cedo, assim, quando ele se aposentar, você vai poder assumir 100%. Vai ser ótimo para todos!
— Claro, mãe, para todos... — ...vocês.
— Por que esse tom, Hélio? O que você está insinuando?
— Nada. Só estou concordando com a senhora. Tenho que ir mãe, vou trabalhar.
— Ah, não se preocupe com esse trabalho mesquinho, não, meu filho. Você vai ter algo muito melhor em casa.
— Certo, mãe, adeus.
— Até logo, Hélio.
Coloquei o telefone no gancho e suspirei profundamente, até que o oxigênio chegasse em bom suprimento ao meu cérebro e minha mente voltasse ao lugar.
Se havia algo que eu desgostava até da mera menção era o meu futuro cargo à frente da herança da família. Era inegável e perfeitamente visível que eu fugia daquele destino como o diabo foge da cruz. Antes, não me era tão detestável, parecia apenas um futuro monótono, mas nos últimos anos, vinha sendo uma ideia insuportável. A vontade que eu tinha era de fazer o que Bonifácio fizera ou como Rodrigo sugerira: “pegue todas as suas coisas, raspe a conta do banco e dê no pé!” era o que ele costumava dizer a respeito. E as vezes acho que ele estava com a razão.
Mas eu não tinha toda essa coragem. Nem sequer conseguia dar a negativa ao tom enfático do meu pai quanto ao compromisso, então continuaria postergando aquele momento até o inevitável. Eu sabia que o dia chegaria, mas o queria sempre mais distante de mim, não mais perto. Principalmente agora que tinha Jacinta ali. Ela apenas aumentava minha vontade de ficar a cada segundo mais distante daquele lugar.
— Ai que vontade de ir para casa. — Falei, pressionando a têmpora enquanto os neurônios voltavam ao funcionamento normal.
Almocei mais rapidamente do que era saudável e disse aos meus tios que iria dormir no sótão a tarde inteira, por isso não queria que ninguém fosse para lá. Eles não se importaram com minha rotina irregular de sono.
Lá em cima, preparei tudo com atenção a cada detalhe, colocando mais uma cadeira limpa à mesa e abrindo todas as janelas, coloquei os livros em um canto e o caderno com lápis e caneta em outro e fiquei esperando, batendo o pé nervosamente contra o piso de madeira em um barulho de ritmo constante.
Andei pelo cômodo, parando diante das janelas e olhando lá para fora, debruçado na sacada, contemplei a visão que Jacinta observava quando me viu pela primeira vez tentando imaginar como tinha sido para ela olhar-me lá de cima e receber todos os sentimentos que vínhamos compartilhando.
Mãos de dedos ásperos cobriram meus olhos. Segurei as duas e me virei para dar de frente com a bela visão em que pensava. Dei alguns passos para dentro, apenas para sair do campo de visão de quem olhasse do jardim e a beijei por um momento. Era o primeiro beijo do dia, o que era cruel, pois já passava das duas da tarde.
— Desculpe pela demora. — Ela falou, quando nos separamos, ainda me abraçando. — Tentei ser mais rápida, mas a Berenice tava me marcando desde que falei com ela de manhã.
— O que disse a ela pela manhã? — Perguntei, puxando a cadeira para que ela sentasse.
— Nada demais... só perguntei se tinha como meu irmão vir trabalhar aqui com a gente.
— O José? Ele não era ajudante de pedreiro?
— Sim, ele é. Mas não é do José que tô falando. É o Emanuel.
— Ah. Ele não é um pouco novo para isso?
— Ele tem 13. Jamily tinha 12 quando veio para cá comigo. Mente desocupada é oficina do diabo. — Ela brincou com o lápis na ponta dos dedos, mãos tensas, mandíbula travada.
— Ele se meteu em alguma encrenca? — Perguntei, sentando na cadeira ao seu lado. Jacinta suspirou e desviou o olhar, deixando alguns cachinhos que escapavam do lenço caírem sobre o seu rosto.
— Nada que a gente já não tenha resolvido. Só é meio difícil, sabe? Ver meus irmãozinhos, tão novos, descobrindo que o mundo não é bom.
— Mas ele é bom, minha querida, as pessoas é que fazem parecer que não. — Segurei sua mão, fazendo com que ela me encarasse. — Há algo que eu possa fazer para ajudar?
— Dessa vez, acho que não. A gente precisava mesmo era de um milagre agora. — Ela ajeitou o cabelo para que saísse do seu rosto e se voltou para mim com um sorriso de que estava tudo bem. — Beleza, o que você vai me ensinar hoje com as letras, homem normal?
Resolvi respeitar seu espaço e não perguntar mais sobre seus problemas, embora quisesse saber como consertar todos eles. Peguei um livro da pilha e começamos a praticar.
Após algumas páginas, Jacinta partiu, de volta à sua rotina e eu voltei ao meu trabalho com os nomes dos livros, listando-os e empilhando as folhas com seus nomes. Quando já tinha juntado uma boa quantidade de folhas atualizadas, saí rumo à biblioteca.
— Bonifácio, preciso da sua ajuda. — Falei, assim que entreguei a papelada.
— Eu sabia que você não ia só trazer isso aqui gratuitamente. — Ele balançou a cabeça, mas logo me olhou com um sorrisinho. — Qual é a da vez?
— Você vai ter que passar um pouco mais de tempo na casa dos seus pais e nós vamos fazer aquilo que amávamos fazer na infância.
— O quê? Tentar destruir a casa?
— Bom palpite. — Observei, com um aceno. — Quase isso. Nós vamos ocupar a governanta até ela achar que precisa de outro ajudante.
Ele sorriu, pegando os papéis.
— Se depender da gente, ela vai pensar em contratar um esquadrão.
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Casa do infinito
Roman d'amourHélio é um pracinha que há poucos meses voltou da guerra e graças às experiências que viveu, encontra-se sem grandes propósitos. Seu pai, que almeja ver o filho à frente dos negócios da família, resolve enviá-lo à casa de sua tia numa cidade longe d...