Capítulo 20

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10 de Junho de 1946

Mainha, Emanuel deve ler isso para a senhora, ele é bom com as letras.

Sei que já fiz isso na carta que deixei, mas queria me desculpar mais uma vez. Sinto muito se isso te decepcionou e peço desculpas por Jamily, mas não eu não tinha lá muitas opções.
Estou escrevendo só para dizer que está tudo bem e que não precisa se preocupar. Os pais do Hélio não foram piores do que a gente imaginava e conseguimos um apartamento em uma pensão. Já arrumei um serviço por aqui e Bonifácio também, Hélio também já tá com quase tudo certo.

Minha casa nova é boa, não é grande, mas tem tudo o que a gente precisa e a dona da pensão também é boa gente. Ainda estou me acostumando com a cidade, aqui sempre tem muita gente e muito barulho, mas também é muito animado e sempre tem lugares onde a gente pode ir se quiser dançar.

Estou com saudades de todo mundo. Diga que mandei muitos beijos e abraços. Como vocês estão?

Jacinta

PS. Já tem o endereço da Mily? Se tiver, me mande, por favor.

Fechei a carta e levantei da mesa. Foi bem no tempo em que Hélio ia saindo do banho, abotoando os últimos botões. Bonifácio ainda estava roncando. O menino num acordava nem quando a gente se arrumava para sair de manhã.

Nem tudo o que eu tinha escrito era verdade, mas eles não precisavam saber. Eles não precisavam saber que fazia uma semana que Hélio estava levando não atrás de não em todos os lugares com um cartaz oferecendo emprego. Ele estava tentando, de verdade, passava o dia inteiro fora, procurando e procurando, só voltava para comer e dormir, mas como o rapaz não sabia fazer nada, ficava difícil achar alguém que ainda quisesse pagar para ele ter que aprender.

— Olha, desde que a gente não tenha que comer comida enlatada, aceito qualquer coisa. – Foi o que Hélio disse, apesar de tudo.

Minha primeira família também não precisava saber que o trabalho do Bonifácio era servindo e preparando bebidas em um bar quase o dia todo, e nem que eu só ia começar no serviço quando saísse do correio. Eles iam saber que eu estava bem e isso era o suficiente por enquanto.

— Vamos passar no correio antes de ir? — falei, indo até ele e ajeitando seu cabelo molhado. — Escrevi uma carta para mainha.

— A gente passa. Pegou o dinheiro do bonde? — Ele já estava coçando os bolsos, procurando qualquer coisa.

— Peguei, não se preocupe, Bonifácio deixou na mesa.

Hélio me ofereceu um sorriso de dentes escondidos e olhar culpado. Eu sabia que ele queria me dar mais que aquilo, queria que tudo fosse entre nós dois. Mas não era isso que a gente tinha no momento, então tinha que tentar com o que nos restava.

— Vamos? — chamei, com alguma animação, tentando deixar Hélio mais confiante.

— Vamos. — falou, vestindo o paletó e pegando a tira recortada de jornal com os endereços em que passaria naquele dia.

Depois do correio, Hélio me acompanhou até o ponto onde o bonde passava.

— Lá vem ele. — falei, ao ver o transporte se aproximando cheio mesmo que ainda fosse cedinho. Hélio estava disperso, pensando em muitas coisas. Segurei sua mão e beijei seus lábios rapidinho, tendo sua atenção toda para mim. — Vai dar certo hoje, você vai ver.

— Assim espero. — Ele forçou um sorriso. — Boa sorte lá, faço votos de que tudo ocorrerá bem.

— Vai, sim. — Subi no bonde sem demora e acenei enquanto partia. Ele acenou de volta e rezei em silêncio para que ele finalmente conseguisse alguma coisa naquele dia, nem que fosse para confortar seu coraçãozinho.

Por sorte, consegui um lugar para sentar, e ainda bem, já que o lugar que eu ia descer era lá longe. Suspirei e fiquei olhando todas as cores e formas da cidade passarem por mim enquanto o bondinho seguia seu roteiro do dia.

Até que eu estava conseguindo me virar na cidade. Já conhecia alguns lugares, como a venda perto da nossa casa, a padaria, a feira, o correio, o bar que Bonifácio trabalhava, aquele em que a gente podia dançar... alguns pontos importantes, né? Também estava aprendendo como funcionavam os bondinhos dali, mas nunca tinha ido tão longe e estava rezando para não errar o endereço.

Ana, a moça que tinha conseguido aquele serviço, tinha dito que a senhora da casa não era muito exigente e que estava realmente precisando de alguém, então estava esperando que ela se agradasse do meu trabalho.

Pedi a ajuda de duas ou três pessoas no caminho e finalmente cheguei na casa. Ela era amarela. Por acaso era uma espécie de destino trabalhar em casa amarelas? Se a senhora dessa casa fosse que nem Quitéria... misericórdia. Espantei o pensamento na hora. O salário ia ser bom, eu conseguia aguentar uma pessoa sem noção.

Respirei fundo, segurando minha bolsinha com firmeza e subi os degraus, tocando a campainha.

— Dinah! — Ouvi alguém lá dentro gritar, seguindo de alguns resmungos que não consegui entender.

— Por que sempre eu? — A outra voz respondeu, já no beiral da porta, abrindo para mim. A mulher que abriu a porta com certeza não era a senhora da casa. Essa moça era jovem, não devia ser muito mais velha que eu, tinha o cabelo bem assentado e curto, muito escuro e bem lisinho, sua pele chegava mesmo a ser mais clara que a de Hélio e ela usava um batom muito vermelho para aquela hora do dia. Seus olhos azuis me olharam sem entender nada. — Pois não?

— Sou Jacinta. Me disseram que estavam precisando de alguém para cuidar da casa. Fui recomendada pela Ana, da casa de Arnóbio Castelo.

— Ah, certo. — A moça se virou para dentro da casa e gritou. — Mãe, é a nova empregada! — Então voltou para mim com um sorriso simpático e uma voz acolhedora. — Entre, Jacinta. Eu sou a Dinah.

A casa era bem menor do que a de Quitéria, mas tinha os mesmos bibelôs caros e porcelanas chiques que lá. Assim como os mesmos móveis de corte detalhado que eram horríveis de limpar.

A senhora que falava vinha descendo as escadas do primeiro andar com um vestido que poderia ser comparado ao que usei no meu casamento, usava bem menos maquiagem que a filha, mas o cabelo estava tão arrumado quanto.

— Finalmente! — ela falou, olhando para mim. — Achei que iria sair de casa antes mesmo que você chegasse, menina, veio do fim do mundo, foi?

— Eu moro um pouco-

— Não me interrompa quando estiver falando. E porque entrou pela porta da frente? Se for ficar mesmo, vai ter que entrar pelos fundos todos os dias, entendeu?

— Sim, senhora.

— O que está fazendo parada aí? Vá fazer o café que logo nós vamos sair e não podemos sair sem comer!

Apenas concordei com a cabeça e olhei para as portas da sala procurando a que me levaria para a cozinha.

— Vem, comigo. — falou Dinah, indicando com a cabeça a porta do final da sala. — Ignora minha mãe, ela é assim mesmo, com o tempo você acostuma. Aqui é a cozinha, ali depois daquela porta fica a dispensa e tem um banheiro para quando você precisar, não use o da minha mãe, ela fica abespinhada, é cheia de coisinha. Enfim, ali ficam as panelas e os pratos aqui. Não use aqueles, são para "ocasiões especiais". — Ela fez aspas e uma careta. — Também não sei para que tudo isso, mas tudo bem. É isso. Quando terminar o café, eu te mostro o resto da casa e te digo mais ou menos como vão ser as coisas. Vou lá para cima pegar o Daniel antes que ele chore e minha mãe fique mal-humorada.

Aquilo era ela de bom humor? Que ótimo. Me livrei de uma Quitéria e arrumei outra pior.
A família tinha quatro pessoas: dona Rosália, a mãe, Clóvis, o pai e os dois filhos: Dinah e Daniel que só tinha três anos, o que era uma boa diferença de idade em relação à mais velha. Clóvis sempre saia para trabalhar às oito em ponto, então o café tinha que estar pronto às sete, porque ele gostava de comer com calma. Dona Rosália era uma mulher cheia de compromissos, ia para organizações de senhoras, para o salão, para eventos sociais, exposições de arte, apresentações... estava sempre arrumando um lugar novo para ir, saía quase todo os dias e quando não saía, recebia alguém em casa. Dinah costumava sair logo depois do almoço, ia para a biblioteca e ficava lá até ela fechar, mas não me disse o que fazia nesse tempo. Então eu deveria cuidar da casa e do bebê.

O garotinho era muito parecido com a irmã e também era muito agitado, estava sempre correndo, gritando, brincando no quintal, se sujando... enfim, fazendo essas coisas de criança que irritam as pessoas chiques. Sinceramente, acho que se você não suporta barulho e bagunça, não deveria ter filhos, porque isso é o que eles mais fazem.

Todas essas coisas eu soube logo no primeiro dia, já que, depois que acabei de limpar a cozinha e os pais dela saíram, Dinah veio ao meu encontro e contou toda a rotina da casa, as coisas que os pais gostavam e que não gostavam e mostrou todos os cômodos.

Não era uma casa muito grande, de modo que eu poderia dar conta de tudo sozinha se me esforçasse bastante.

— Bom, acho que é isso. — ela falou, depois de me mostrar tudo. — De manhã, geralmente eu fico no meu quarto, ocupada com os livros, então se precisar de qualquer coisa, pode me pedir. E se o Dani perturbar muito, manda ele para lá que ele vai.

Eu já ia perguntar onde que estava o pequeno quando ouvi sua vozinha atrás de mim.

— Nan, Nan! — ele chamou, correndo na direção da irmã, mas parou ao me ver, olhando para mim todo desconfiado antes de desviar e correr para os braços da moça. Ainda estava de pijama.

— Ei, miúdo, tudo bem? Essa é a Jacinta, ela vai cuidar de você agora.

Ele balançou a cabeça e se agarrou com a irmã. Ela revirou os olhos.

— Tudo bem, Jacinta, pode ir limpando lá embaixo que eu arrumo esse anjinho.

Concordei com a cabeça e sem demora fui ao trabalho. A casa estava precisando mesmo de uma faxina boa, tinha pó em todo canto. Dona Rosália ia ter que me pagar muito bem dado aquele serviço.

Estava tão complicado que as manchas na cerâmica da varandinha dos fundos não saiam por nada e eu precisei pegar o produto mais forte na dispensa. Acabei escutando enquanto Rosália falava com Daniel diante do armário, pegando um dos copos de vidro que eu não tinha a permissão para usar.

— Não pode pegar aquele, entendeu? — Ela apontou para os copos de inox no outro canto. Os que eu usava. Pelo seu tom, a bronca já estava lá para a metade. Continuei minhas obrigações sem fazer barulho, ninguém percebeu que eu estava lá. — Só esses aqui. Você nunca sabe as coisas que esse povo traz para dentro de casa. As doenças deles são diferentes das nossas, são muito sujas e você não quer pegar essas coisas.

Daniel não parecia estar acompanhando as palavras, nem parecia muito interessado, para ser sincera, mas Rosália falava como se transmitindo uma mensagem de vida ou morte. Uma mensagem que inflamava meu coração de raiva enquanto eu saía dali no mesmo silêncio em que cheguei.


***


Quando cheguei em casa, já era quase sete horas, de todos os meus ossos, acho que só as costelas não estavam doendo, porque todo o resto estava implorando para tomar um banho e se deitar.

Já estava escuro quando cheguei e, ao acender as luzes, me deparei com o apartamento em pandarecos. Bonifácio tinha deixado a cama por fazer, com as roupas jogadas por cima, ainda nem tinha desocupado a mala que estava ali acumulando peças amassadas, o pijama de Hélio estava no chão, encostadinho do lado da porta do banheiro e as duas toalhas encima da cama. A mesa apinhada de coisas, mais parecia um lugar de bagunça que uma mesa. Nem os pratos do café da manhã Bonifácio tinha colocado na pia, e as panelas ainda estavam sujas.

Suspirei, deixando a bolsa no gancho atrás da porta.

— É, parece que o trabalho ainda não acabou, Jacinta. — falei, para mim mesma, pegando a bucha e o sabão e lutando contra a louça.

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