Capítulo 26

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Foi difícil conseguir sair da casa dos Lacerda sem deixar a dona Rosália pensando na minha demissão, mas ela permitiu apenas porque era para encontrar Fátima Castelo. Dinah disse que iria à biblioteca e me deu carona até aquela casa.

Eu tinha que admitir que era uma casa bonita, mesmo parecendo antiga demais, era muito bonita. Eu até tentava imaginar o pequeno Hélio correndo naquela calçada, debruçado na janela, subindo nas árvores da rua... Como Fátima tinha conseguido não amar de verdade o seu próprio e único filho? Pensar sobre isso foi o que me deu forças para subir os degraus e tocar a campainha.

Vesti uma de minhas roupas de domingo, usando os sapatos bonitos e o colar que Dinah tinha me dado. Ajeitei o cabelo num coque baixo e apertado e Dinah me emprestou aquele batom de bom tom.

A mulher que abriu a porta, reconheci, era Ana. Cumprimentei ela com alegria, agradecendo o favor da indicação e nos falamos um pouco, com ela procurando saber como estava Hélio e como a gente estava indo no Rio. Ana me levou até uma sala de visitas com poltronas e rádio, tudo com a cara das coisas da casa de dona Quitéria: caro e frágil. Essas coisas de rico que não fazem realmente sentido porque não têm muita utilidade e podem quebrar com qualquer sopro.

Fátima Castelo não lembrava muito o filho. Mas eles tinham os mesmos olhos. Achei um sacrilégio que seus olhos fossem iguais aos de Hélio, mesmo que isso fosse esperado. Para ser sincera, eu não queria que eles tivessem nada do meu Hélio na aparência, já que seus próprios corações cruéis eram tão diferentes do dele.

— Boa tarde. — falei, de uma forma educada e fria. Bem diferente de como vinha conversando com Ana até ali.

— Boa tarde. Jacinta, não é? — concordei com um aceno. — Sente-se, Ana vai trazer o lanche.
Meio desconfiada, sentei na poltrona que ficava na frente dela.

— Então você é a famosa Jacinta. — observou, me olhando de alto a baixo daquele jeito de avaliação. — O que disse ao meu filho para fazê-lo desistir de tudo, hum?

— Nada. — Dei de ombros, me ajeitando na cadeira. — Ele já queria desistir há muito tempo. Eu estar lá quando fez isso foi só uma coincidência, ele faria mais cedo ou mais tarde.

— Está mentindo. — ela soou muito calma.

— Não, senhora, não estou. — Rebati, controlando a irritação. — O Hélio abomina a loja e toda essa herança, se a senhora não sabe disso, é porque não conhece ele.

— Está que eu conheço o meu próprio filho, menos que você que chegou na vida dele há seis meses?

— Sim. Não é preocupante?

Fátima balançou a cabeça e afastou do colo o bordado em que estava trabalhando.

— Se você tivesse conhecido ele antes... — falou, olhando distraidamente quando Ana chegou com o lanche. — Veria que meu filho não é assim.

— Ele não era assim. Agora, é. Mas, direto ao ponto: por que me chamou aqui?

— Estava curiosa para descobrir quem você era. — Ela pegou seu suco e mexeu, avaliando se estava forte o suficiente. — Você sabe, causou um rebuliço enorme na minha família.

— Sim, eu sei. Não era a minha intenção, acredite.

— E qual era sua intenção? — Os olhos dela brilhavam quando me encarou e deu um gole no suco gelado.

— Apenas ficar com ele, nada mais que isso.

— Apenas ficar com o dinheiro dele, você quis dizer.

— Se fosse isso, eu ainda estaria com ele agora? — rebati, impaciente. — Se me chamou aqui para me acusar, Fátima, sinto muito, mas tenho mais o que fazer.

— Não, menina, fique. — Pela primeira vez, não parecia uma ordem, mas um pedido. Quase uma súplica. — Eu não pude impedir meu filho de ver... Seja lá o que ele viu em você, mas ele ainda é meu filho e eu me preocupo com ele.
Ergui as sobrancelhas, cruzando os braços. Ela estava mesmo dizendo aquilo? Que mulher hipócrita! Estava mais contraditória do que as galinhas que comem as sobras de uma canja.

— Ah, não me olhe assim. Posso ver o julgamento no seu olhar.

— Desculpe. — Me rendi, baixando o olhar para o copo de suco suado na bandeja. Ainda me perguntava porque eles suavam. — É que... Três cartas...

— Ele te contou? — Concordei com a cabeça, pegando o copo. — Não é tão ruim quanto parece, além do mais, só tem as cartas...

— E as babás? Você nunca criou seu filho, não venha dizer o contrário.

— Eu era uma mulher ocupada.

— Não é bem o que eu soube ou o que pareceu a ele. Deveria começar a pensar sobre isso.

— Você não entenderia. Ainda não tem filhos.

— Não preciso ter para ver que Hélio foi negligenciado.

Fátima beliscou um dos doces oferecidos, fugindo da minha acusação. Ficamos em silêncio por um momento em que apenas tomei o suco o olhei para a sala ao nosso redor. No móvel de madeira ali na frente, vi uma medalha de guerra em uma caixa com vidro trincado e não pude deixar de me perguntar quem tinha devolvido ela para lá.

— Como ele está? — a mulher, perguntou, por fim.

— Está bem. Está feliz.

— Fiquei sabendo.... Ora, fiquei sabendo que virou padeiro.

— Sim, ele trabalha em uma padaria lá no centro.

— Meu filho, padeiro... — Ela balançou a cabeça em desaprovação. — Todas aquelas escolas, todo o investimento...

— Ele está feliz. — repeti, olhando para ela com firmeza. — Não temos uma mansão como a sua e com certeza não estamos nem perto de ter o dinheiro que vocês têm. Mas somos felizes assim mesmo. Muito mais do que se a gente estivesse assim. — Indiquei as paredes ao redor. — Nem tudo é sobre uma carreira de muitos cruzeiros.

— Mas ter ao menos conforto é bom. — interviu, com um tom mais ameno. — Me diga, Jacinta, alguma vez você chegou ao final de um mês com todas as contas quitadas? Já teve um quarto próprio? Sequer teve sua própria cama? Alguma vez você já pôde se dar ao luxo de experimentar um doce caro e bonito só para ver como era?

— Isso não importa. — a resposta não era tão segura quanto eu gostaria, em partes, sabia que Fátima estava certa. — A gente dá um jeito. As preocupações fazem parte, de qualquer forma.

— Hum. — observou, apenas parando um pouco e olhando através das lembranças em torno daquelas paredes. — Ele está mesmo feliz? Satisfeito? Disse isso para você?

— Sim. Ele está muito melhor do que quando o conheci. — aquilo sim era algo que eu podia falar com confiança, só de pensar nas mudanças, já sorria um pouco. — Ele não tem mais pesadelos e nem está o tempo todo assustado, as lembranças ainda estão lá, mas não machucam o tempo todo. Ele sorri agora. De verdade.

— Eu não sabia que ele estava tendo pesadelos...

Pelo jeito, ela não sabia de muita coisa, mas ao menos parecia culpada por isso. A mulher olhou o delicado relógio em seu pulso.

— Acho melhor você ir, Jacinta. Logo, logo meu marido vai chegar e não quero que ele te veja aqui. Ele... ficou mais insatisfeito que eu com a situação toda.

— Não tenho dúvidas. — Sem demora, peguei minha bolsa e me preparei para ir. Conhecer Fátima já era um passo muito grande, Arnóbio Castelo, com certeza não era alguém que eu gostaria de ver tão cedo. Não conseguiria ser tão paciente com ele. — Bom, então é isso, não é? Vai nos deixar em paz agora?

Ela me olhou, avaliando e testando novamente.

— Deixarei. E, sabe, Jacinta, até que você não é como eu esperava. Talvez não seja tão ruim, afinal.

Olhei para ela, desconfiada. Havia certa dor em seu olhar, mas não sei... talvez um pouco de esperança.

— Cuide dele.

— Eu vou. — garanti, sem nenhuma dúvida ou hesitação.

Ela acenou com a mão, indicando que eu deveria sair logo. Não discordei, em dois pulos estava de volta na rua. Dinah me esperava na calçada, encostada no carro.

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