Capítulo 2

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Todo mundo tava correndo. Sempre odiava quando o dia era assim. A casa ficava a pior gritaria, todo mundo no mesmo canto, se acotovelando, gritando, fofocando... até o jardineiro que não tinha nada a ver com nossos serviços de dentro de casa aparecia e até ele tava correndo.

No tanto que a governanta gritava ordens, alguém na cozinha pedia por mais batatas e todos conversavam procurando as coisas perdidas naquela budega, entrei na despensa e fechei a porta. Sozinha no escuro, consegui parar pra respirar. O ar entrando e saindo de mim devagar, desbagunçando a mente aos poucos. Nunca achei que gostaria tanto daquela despensa.

O que tinham me mandado fazer mesmo? Tentei fazer a lista, contando nos dedos. Estender os lençóis, levar os jogos de cama limpos aos quartos, limpar os móveis da sala de entrada... eu já tinha feito aquelas coisas. Mas tava faltando algo, tinha certeza, tava na beirinha da memória, ah, Deus, o que era?

- JACINTA! - Me encolhi com o grito da governanta passando ao pé da porta. - Onde está aquela menina? Mandei ela limpar o sótão e ela sumiu! JACINTA!

Ah, era isso! Esperei a voz irritada ficar mais longe antes de abrir a porta e correr atrás da vassoura e das outras coisas.

Por que eu tinha que limpar o sótão? Era uma boa pergunta, de verdade. Ninguém usava aquele cômodo pra mais nada além de guardar velharias e entulhos que não cabiam nos outros cantos da casa. Eu ia perder o resto do dia naquela tarefa, tinha certeza. Bem que poderiam ter colocado mais alguém pra me ajudar, mas naquela confusão, duvidava muito que isso fosse acontecer.

Lá dentro era um grande espaço cheio de bagunça, quente como o inferno e ventilado como um forno. Por isso não tinha nada demais lá.

Apenas depois da parte que formava o telhado tinha um cômodo bem menor, um quarto com duas sacadas estreitas na frente e duas janelinhas, uma de cada lado, por onde entrava um ventinho até gostoso quando tavam abertas, mas elas sempre tavam fechadas, então sempre estava quente lá.

A primeira coisa que fiz quando cheguei ali foi abrir todas as janelas que deu. Aí amarrei bem o cabelo num nó apertado coberto por um lenço e tomei minha arma contra a poeira: o pano bem húmido.

Eu costumava pensar em um monte de coisas enquanto fazia limpeza. O pior é que no meio daqueles pensamentos sem pé nem cabeça, sempre aparecia umas perguntas que ninguém conseguia me responder, até porque eu não tinha coragem de perguntar a mais ninguém. Coisas como: por que os copos suam quando tão com água gelada? Por que as folhas das mangueiras não nascem verdes, mas depois ficam dessa cor? Por que cidades ribeirinhas são tão quentes? Pra ser sincera, acho que na verdade estava sempre pensando nessas coisas, mesmo quando não estava limpando.

- Jaci, não vai almoçar? - Era minha irmã, na beirada da escada. Não tinha uma gota de suor nela. Que inveja.

- Já... vou. - Respondi, colocando uma caixa pesada de volta no lugar dela depois de limpar ali. Por que a poeira se acumula mesmo onde não tem vento?

- Só falta tu, vamos logo.

Joguei o pano de volta na bacia e segui Mily pela escada estreita.

- Você guardou o resto? - Perguntei, assim que cheguei perto dela.

- Guardei. Coloquei junto com as nossas coisas.

- Muito bem. - Dei um tapinha nas suas costas. - Pequena eficiente.

- Claro, não sou você.

- Como é, Jamily?!

Ela pulou de dois em dois degraus e correu para a segurança da cozinha antes que eu pudesse chegar perto o suficiente pra puxar seu cabelo e desfazer o coque que prendia ele.


A cozinha tava uma muvuca, mas, pela primeira vez naquele dia, era um bom sinal.

Todo mundo tinha procurado um cantinho pra sentar. Quem chegou primeiro, podia ficar na mesa, os outros, nos pés das portas e nas banquetas perto das paredes.

Ao todo, eram quatro faxineiras, duas cozinheiras, quatro jardineiros e dois ajudantes prontos pra tudo. Nem sempre todo mundo tava em casa, na maioria dos dias, sempre faltava duas ou três pessoas, mas não naquele dia. Afinal, naquele dia a família Gutenberg ia receber visita, então tudo tinha que estar nos trincos. Pelo que a gente ouviu, era um sobrinho da dona Quitéria. Filho do irmão dela que morava capital. Disseram que tinha sido um daqueles que lutaram na guerra e depois disso o rapaz nunca foi o mesmo. Já fazia quase um ano que tinha voltado, mas depois da expedição, ficou esquisito, afastado, mal-educado, impaciente.... Os defeitos eram muitos, parece que tinha ficado doido. Bom, pelo menos foi isso que ouvimos a dona Quitéria falar com a cunhada ao telefone. Por isso todo aquele fuzuê.

Em um dia qualquer, depois de comer, Mily e eu íamos sair de fininho e ficar deitadas no chão lá na varanda dos fundos do primeiro andar, depois da porta do sótão. Aí a gente ia perder uns trinta minutos, descansando a comida, que saco cheio não se enverga. Mas aquele dia não era normal, então assim que coloquei nossos pratos na pia sem alarde, a governanta já me olhou de cara séria e cruzou os braços, me acompanhando com o olhar azul, como se uma simples encarada fosse castigo, de um jeito como quem quer saber se eu ia mesmo desafiar a sua ordem. Nem existia mais a ideia da varanda. Subi para o sótão e Mily voltou para as salas debaixo.

Aquele dia chato não era dia de pausas de comida. Era dia de correr. Então a gente corria.

Lá no meio da tarde, o calor do sótão tava insuportável. Sem brincadeira. Eu já tava mais suada que um porco quando resolvi tomar um ar. Fui até a sacada do quartinho depois do sótão e me debrucei na grade, respirei bem fundo, sentindo o ar mais húmido lá de fora me refrescar de dentro para fora também.


Pelo menos a brisa do verão trazia algo de fresco, batendo no suor do meu corpo e secando ele devagarzinho. Tinha algo de calmo e bom naquela simples pausa. Algo que parecia entrar em mim e correr com o sangue e por alguns segundos foi só nisso que eu pensei.


Um barulho no portão chamou minha atenção e finalmente olhei naquela direção, o que serviu pra que eu visse o desconhecido entrar.


Era um rapaz novo, seus vinte anos. Não era lá muito bonito, seu rosto parecia um pouco desproporcional: nariz muito fino, olhos muito juntos e bochechas cavadas. Seu cabelo não era bem penteado e ele era magro demais pra lembrar um militar. A combinação toda mais parecia uma caricatura de jornal. E ele tava muito, muito sério, se meu irmão mais novo tivesse visto, teria dito "cara feia pra mim é fome, vai comer pra ver se melhora". Mas foi quando ele me olhou que o vi direito. Foi na mesma hora em que seus olhos claros acharam os meus.

De certa forma, era como se eu já conhecesse aquele moço há muito tempo, tipo, muito de verdade. Em uma outra vida, em um outro mundo. Aqueles olhos grandes com as sobrancelhas largas tinham o mesmo ar triste que me faziam lembrar de algum momento antes dos meus tempos de menina. Num tempo em que eu não podia lembrar de mais nada, só dele.

Aquela sensação estranha me fez arrepiar inteirinha e ficar ali por mais tempo do que deveria. Me forcei a lembrar que estava no mundo real e não em um sonho e com calor e tudo voltei lá pra dentro, escapando do alcance dos seus olhos, meio sem saber o que tinha acontecido.

Ouvi a zoada lá embaixo de quando dona Quitéria encontrou o rapaz e percebi que era mesmo o seu sobrinho. Voltei para a faxina, tentando esquecer tudo aquilo o mais rápido possível e me lembrar que devia ficar longe de confusões com garotos.

Quando consegui terminar aquele cômodo azarento, já tava quase na hora de ir pra casa, só me restava ajudar Jamily a terminar a tarefa dela pra que a gente pudesse sair. Quando deixamos a linda casa amarela pelos fundos, o sol já ia caindo rasante pelo céu de um jeito que as ruas ficavam alaranjadas só porque o próprio céu tinha aquela cor de ouro e frutas maduras com uma nuvenzinha aqui, outra aculá, e uma estrela sem vergonha que ia aparecendo no perder da vista. Era um céu lindo que coloria os paralelepípedos da rua como se eles fossem feitos de joias e os telhados das casas de pedras preciosas. Observar aquela beleza dos sonhos me fazia lembrar o infinito e isso me levou ao garoto naquela tarde.

- Como foi seu dia? - Perguntei pra Mily, tentando mandar embora aquelas lorotas da minha imaginação enquanto a gente descia a ladeira.

- Ah, foi a mesma coisa... Mas teve uma coisa engraçada!

- Hum.

- O Samuel tava me perturbando lá no quintal quando eu tava arrumando a dispensa, aí foi se pendurar na coluna da varanda, caiu e saiu rolando pela ladeirinha. Foi tão engraçado! Você tinha que ter visto! Parecia uma jaca mole caindo! - Ela segurou a risada, o que só me fez achar mais graça.

Eu tinha certeza que ela tava de namorico com o Samuel, os dois tavam sempre juntos, na procura de um, você só precisava achar o outro. Mas Jamily nunca que admitia isso pra mim, menina traquina.

- Ah, e eu achei um cartão postal de uma das revistas da dona Quitéria, é um retrato muito bom de um outro país. Vou te mostrar... - Ela continuou falando empolgada da sua descoberta que com certeza ia pra junto da lata de biscoitos vazia onde guardava sua coleção de retratos dos lugares que ainda queria conhecer.

Quando chegamos em casa, mainha ainda não tinha voltado do serviço, só tava lá nossa avó com os mais novos.

Eram sete filhos no total. Antes de mim, só tinha o José, a próxima era Jamily, depois o Emanuel que já era moleque e as crianças: Eliane e os gêmeos, Edson e Elias. Todos ainda moravam em casa, mas a maioria passava o dia fora. José trabalhava como pedreiro com nosso tio, eu e Mily, no mesmo ofício da nossa mãe, nas casas de família, o Emanuel, quando não tava na escola, tava por aí vendendo jornal e os outros três só iam pra escola e ficavam com nossa avó que já tava cansada demais pra trabalhar, o joelho dela não deixaria fazer isso mesmo que quisesse, tava sempre doendo.

Sem demora, pegamos na nossa sacola o pote que Jamily tinha escondido um pouco do almoço e juntamos com o que a vó tinha feito. A mesa era uma bagunça de gente falando e comendo quando minha mãe chegou.

As crianças correram até ela num pé de pulo e ela os abraçou apertado. Depois veio até nós e, sem muito tempo, beijou a cabeça de cada um antes de sentar no seu lugar.

- Podem ficar com a minha parte. - Ofereceu, com um ar satisfeito. - Já comi lá no serviço. Ah, trouxe uma coisinha pra vocês. - Ela tirou da bolsa um bolo de frutas pela metade, todos comemoraram.

Apesar da cara satisfeita da minha mãe quando partiu aquele pedaço em oito, tanto eu quanto José, sentado na minha frente, sabíamos que ela não tinha tomado café e recusamos o bolo pra ela comer de manhã, antes de sair. Uma forma meio troncha de "toma lá, dá cá".

Aquilo me fazia perguntar se as pessoas que nos pagavam tão pouco e, às vezes, nos recusavam até os restos, sabiam que uma fatia dormida de bolo poderia ser dividida em oito.


Não, eles não sabiam. Nunca precisaram descobrir. Mas a gente sabia. Sempre soube. 


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