Capítulo 19

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Já fazia quatro noites que tínhamos deixado aquela cidade pequena e pacata onde minha detestável tia morava, a primeira, dormimos na fazenda do meu avô, o que foi ótimo, porque lá tinha muitos quartos então, pela primeira vez, pude dividir o quarto e a cama com minha esposa com toda a privacidade reservada aos recém-casados. Nas duas noites seguintes, passamos na estrada, com Bonifácio e eu trocando entre quem dirigia e quem dormia e Jacinta cochilando quando lhe dava sono. E então, chegamos na quarta noite. Onde finalmente estávamos parados sobre o chão, em paredes de tijolos ao invés de lata e sobre uma cama.

Já começa que a cama era muito pequena, de modo que nem eu, nem Jacinta podíamos nos mexer sem ter medo de cair no chão e, segundo, mas de modo algum menos incômodo, tinha o meu primo. Digamos que dormir no mesmo quarto que Bonifácio me fazia querer enfiar uma rolha em cada narina sua.

E eu nem queria acordar cedo naquela manhã, mas foi inevitável.

Quando abri os olhos, fui absorvendo o quarto devagar. A tinta gasta, os lençóis finos, a janela aberta trazendo a mais suave brisa da manhã... Só não podia ouvir os pássaros, nem sequer os pardais com seu furdunço matinal conseguiam disfarçar os roncos do meu primo.

Mas havia algo que conseguia aplacar os roncos incansáveis do meu colega de quarto: a respiração tranquila daquele peito sobre o meu e o morno perfume de sabonete e amêndoas, aquela mão de dedos compridos e ásperos descansando em minha barriga, subindo e descendo a cada respiração, os cachinhos bagunçados sobre meu pijama, encostando levemente meu rosto.... Quem ligava para os roncos de Bonifácio quando acordava com uma coisa dessas pela manhã?

Coloquei a mão sobre a sua e ela enlaçou nossos dedos. Quando olhei seu rosto tão próximo, seus olhos multicores me sorriam de volta.

— Te acordei? — sussurrei, a voz rouca.

— Nada, já estava acordada. Quem dorme com ele?

— Boa pergunta.

— Não foi exatamente assim que imaginei nossa primeira semana de casamento.

— Não posso discordar. — Ri um pouco. Nem parecia que tínhamos casado há pouco mais de uma semana, com a quantidade de coisas que aconteceram desde aquele dia, parecia muito mais. — Mas em breve isso mudará. Vou pegar meu dinheiro e amanhã a essa hora estaremos na nossa casa, no nosso quarto e os roncos de Bonifácio estarão há algumas paredes de distância.

— Hum, que sonho bonito. Podemos começar ele agora?

Sorri para ela que me retribuiu, abraçando-me com carinho, a envolvi de volta, aproveitando apenas mais um pouco seu calor junto a mim, enquanto o dia não se tornava corrido demais.

— Vamos sim, meu oceano, rumo ao próximo capítulo.


***


— Papagaio! — exclamei, chutando uma pedra próxima o mais longe que pude.

— Isso aqui está em pandarecos! — falou Bonifácio, indicando a fachada do banco com visível desprezo. — Onde já se viu uma coisa dessas? Fazer uma transferência desse valor sem nem ter o dono da conta presente?!

— Certeza que seu pai falsificou a assinatura. — Jacinta concordou, cética. — De que outro modo conseguiria o bilhete?

— Meu Deus, e agora? — perguntei aos céus, buscando desesperadamente por uma resposta. — Estamos no meio do Rio de Janeiro, em três, sem um tostão furado... o que vamos fazer?!
Jacinta segurou minhas duas mãos e me olhou nos olhos.

— Meu plano agora: a gente trabalha. E muito. Está na hora dos herdeiros conhecerem o mundo real.


***


Não tínhamos lá muitas opções além da ofertada pela minha esposa, então simplesmente voltamos à pousada, trocamos de roupas e nos preparamos para um longo dia pelas ruas do Rio de Janeiro em busca de emprego.

Minha sorte realmente era Jacinta e Bonifácio. Os dois já tinham se entrosado deveras com a família dona do lugar e conseguiram que a senhora da casa nos desse uma carta assinada para entregar à sua irmã que morava ali perto e tinha uma pensão com alguns quartos onde poderíamos ficar por um tempo e só precisaríamos pagar o aluguel ao final do mês. Jacinta disse-me que contou a nossa história à senhora de um jeito que a fizesse rir e assim conseguiu tudo isso. Não questionei os seus métodos se eram eficazes.

Ao invés disso, assim como eles saí por aí a fora. Optamos por nos dividir, assim poderíamos ver mais lugares e possíveis oportunidades.

Assim que me separei da minha nova e diminuta família, olhei ao redor, um pouco perdido do que vinha agora, nunca tinha chegado nesse capítulo da vida e nunca precisei descobrir. Jacinta estava certa, era hora de conhecer outra face do mundo. Mas para isso tinha que relembrar minhas raízes.

Revirei os bolsos para achar os últimos cruzeiros e parti com um destino certo.

As ruas eram conhecidas, o caminho não era em todo longo, e não demorei a ver a fachada familiar. Por sorte, talvez pelo horário, não havia muitas pessoas no correio, pedi papel e caneta e escrevi com rapidez sobre a bancada mais próxima.

Enderecei e passei à moça para selar, entregando-lhes meus últimos cruzeiros. Enquanto aguardava, parado ali, a porta foi aberta e alguém entrou. Distraidamente, virando do relógio para lá, olhei quem entrava. Repensei toda a minha sorte nesse momento.

— Ana! — exclamei, com alegria, quase saltando de gratidão por vê-la.

— Menino Hélio! — Devolveu com um sorriso surpreso, vindo me abraçar sem perder tempo.

— Ah, Ana, como estou feliz em te ver. — falei, olhando-a. Ela ainda estava com o uniforme da casa de meus pais. Seus cabelos impecavelmente amarrados. As mãos com cheiro de temperos seguraram as minhas com seu aperto materno.

— Nem me fale, menino! Ah, eu soube de tudo o que aconteceu. Tava em casa quando tua tia ligou. Foi tua mãe que atendeu... ah, quando seu pai soube... misericórdia. Ouvi dizer que tu teve lá, mas não me disseram mais nada! O que disseram a você, menino?

— Muitas coisas, Ana. Mas também falei muito... enfim.

— Sinto muito, menino Hélio. — Havia um quê de tristeza em sua voz que tornava visível o pesar. — Mas me diga: onde está a moça? Como ela é, hum?

Não pude segurar o pequeno sorriso que se espalhou pelos meus lábios.

— Ela é linda, Ana. É muito espirituosa, tão alegre... a senhora gostaria dela.

— Tenho certeza que sim. Quero conhecer a moça que te deixou assim feliz de novo. Onde ela tá?

— Está conhecendo a cidade. Estamos procurando trabalho. Meu pai tirou todo o meu dinheiro do banco, temos que arrumar uma forma de ganhar algo antes do final do mês, para pagar o aluguel.

— Esse teu pai... — Ela fez uma careta e apenas imagino as palavras que passaram por sua mente. — Mas a gente não pode fazer nada, não é, filho? Me diga: sua moça trabalha com o quê?

— Ela já fez de tudo, mas trabalhava principalmente nas casas de família.

— Eu conheço uma mulher que estava precisando de alguém. Você sabe, para olhar o menino, cuidar das roupas, da comida... essas coisas. E ela paga bem, até onde eu sei. Posso falar com ela. Será que sua mulher se interessa?

— Sim, seria ótimo! Acredito que ela vá aceitar, sim.

— Pronto, me passe o endereço em que vocês estão que eu mando um menino levar o recado quando souber.

Escrevi o endereço para ela e logo nos despedimos, cada um mais ocupado que o outro. Então finalmente saí rumo à minha busca. Estava bastante confiante, não podia ser algo tão difícil assim.

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