Capítulo 23

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Mandaram-me para o caixa depois de algumas semanas, disseram que eu era desastrado demais para ficar na cozinha e só deveria voltar para lá depois de um bom tempo no caixa, quando já tivesse mais prática e fosse menos desastrado no serviço. Não reclamei. Não suportava mais levar farinha na cara.

- Eu só penso nela e odeio isso! - desabafou Bonifácio na tarde seguinte, debruçado no balcão enquanto o movimento não ficava caótico.

- Em quem? - Perguntei, erguendo os olhos das moedas que estava contando por um momento.

- Na Dinah!

- Na Dinah?

- É!

- Eu nem sabia que vocês se conheciam.

- Eu conheci ela quando a Jacinta esqueceu a bolsa, fui levar e foi ela quem abriu a porta. Ela é tão linda!

- E?

- E o quê?

- Ela é linda e o que mais?

- E precisa de mais?

- Eu desisto de você, Bonifácio. - Guardei as moedas e anotei o valor no bloquinho.

- Mas ela não me dá valor!

- Não imagino o porquê...

- Você está sendo irônico?

- Talvez.

- Ah, faça-me o favor, me conte seu segredo. Você é feio, a Jacinta é linda. Com todo o respeito. - adicionou, rápido, antes que eu sequer tivesse terminado de anotar.

- Minha esposa é belíssima, nunca ouse dizer o contrário.

- Longe de mim mentir assim. Mas, então me conte, como que você fez, hum?

- Eu simplesmente não fiz, Bonifácio. - Saí do caixa para guardar a nota com as outras na gaveta do canto. Bonifácio me seguiu pelo outro lado do balcão.

- Então como conseguiu?!

- É uma coisa que você não vai entender,
então nem vou explicar.

- Ah, mas você tem que me dizer seu segredo, por favor!

- Não tem segredo nenhum. Eu a vi, ela me viu, sentimos muitas coisas... foi isso.

- Então será que a Dinah também me achou bonito? Mas então por que ela aceita meu convite para sair?

- Olha, se ela tiver bom senso, não vai sair com você nunca. - Passei a chave na gaveta e procurei Emílio. Avistei ele sentado do lado de fora da cozinha, pelos fundos, almoçando. Era o momento perfeito.

- Ué, por que não? Todo mundo gosta de sair comigo.

- Tá se sentindo demais, Bon. Tenho que ir, depois a gente conversa. - Comecei a andar para a cozinha.

- Hélio, só me diz o que eu tenho que fazer!

- Ah, compra flores para ela, declama um poema... - especulei, parando na porta da cozinha por um momento. - Pode começar tentando dizer que ela é mais que bonita, é um bom plano.

E deixei que ele pensasse sobre isso sozinho.


Eu estava esperando que o meu excelente desempenho na função nova fosse capaz de conhecer Emílio. Então fui bem confiante entregar a proposta.

- Mas de jeito nenhum! - ele exclamou, quando lhe falei tudo.

- Será só hoje, faço todo o serviço até às cinco.

- Mas cinco e meia é quando tem mais gente! Quem ficaria no seu lugar?

- O Genilson concordou em trocar hoje. Eu venho no domingo de manhã, no lugar dele.


Emílio estreitou os olhos para mim, desconfiado.

- Se você conseguir terminar o serviço até às cinco...

- Obrigado! - exclamei, com um sorriso, me pondo de pé. - Eu sabia que o senhor era um homem de bom coração.

- Pra onde vai?

- Trabalhar. Vou terminar absolutamente tudo até as cinco.

Ele resmungou alguma coisa como "não sei para que tanta importância. É só um aniversário". Mas ele nem imaginava o quanto isso era importante.

Tenho apenas uma lembrança de um momento de afinidade com meu pai, já que no resto do tempo ou ele estava trabalhando, ou estava ocupado demais para mim. Fora este momento específico, todos os outros que eu poderia chamar ao menos de acolhedores era quando me trazia presentes que achava que eu gostaria de ter. A parte inusitada é que ele dificilmente acertava o que eu gostava, mas eu sempre fingia que sim porque isso o deixava bastante satisfeito consigo mesmo.

Nessa vez em especial, eu tinha oito anos. Foram dois dias depois do meu aniversário e ele queria sair apenas comigo. Tenho a intuição de que ele e minha mãe haviam brigado recentemente, o que explicaria a ausência dela, mas nunca soube se era isso mesmo ou se ela apenas não quis ir.

Sei que estávamos apenas nós dois e ele saiu comigo de carro sem dizer nada, nem para onde íamos ou o que faríamos. Apenas entramos no carro e saímos.

Não conversamos muito. Ele fez algumas daquelas perguntas genéricas do tipo: "como vai a escola?", "Você já sabe ler?", " E aquele seu amigo... qual era mesmo o nome dele?" Para as quais não esperava muito bem uma resposta e que sempre respondia com "Muito bem, filho" a não ser que minha resposta o desagradasse e ele tivesse uma brecha para me alertar sobre minha conduta inadequada e me lembrar que caminho deveria tomar.

Ele me levou para um museu onde gastamos algumas horas de curiosidades históricas que não me eram tão interessantes assim, mas o bastante para passar o tempo. Depois ele me comprou um algodão doce de tamanho suficiente para deixar qualquer criança feliz e então fomos para casa.

E aquele foi o dia onde meu pai esteve mais próximo de mim durante toda a vida. Quando criança, eu me agarrava a essa memória como se ela fosse a coisa que me mantinha vivo, lembro de ter guardado aquele palito velho do algodão doce por anos junto dos meus brinquedos, porque sempre que olhava para ele lembrava daquele dia em que meu pai dispensou todos os seus compromissos importantes para passar apenas comigo.

Com o passar dos anos, lembrar daquilo me magoava, e agora me enchia de certa raiva. E eu sempre lembrava de todo o acontecido durante os aniversários.

Mas eu não queria deixar aquelas memórias amargas deixarem minha nova vida agridoce.

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