Capítulo 25

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Podia ouvir o som do chuveiro enquanto Jacinta tomava banho. Eu estava diante da porta que dava para a varanda estreita, dando o nó na gravata distraidamente, as mãos fazendo aquele trabalho por si só, enquanto a mente vagava entre um vão distorcido de memórias antigas.

Quando ia para lá, sempre pegava o primeiro trem da manhã, dada a distância em que a casa ficava e à dificuldade de chegar até lá de carro. Era uma viagem quase interminável.

Minha parada era a última e então eu descia da locomotiva com todos os ossos do corpo meio dormentes, como se precisassem de uma medida de graxa para funcionar, mas aos primeiros passos pela estrada de terra tudo começava a voltar para o seu devido lugar.

A casa era simples, rodeada de um terreno não muito grande que sempre estava cuidadosamente ciscado e limpo onde se plantavam algumas hortaliças e outras plantas decorativas. E ver aquela casinha deixava-me mais feliz que encarar uma mansão de ouro e cristal.

Entre aquelas paredes de tintura descascada se escondia meu melhor amigo que sempre me recebia com um sorriso de orelha a orelha, sentado na porta, lendo seu jornal ou apenas passando o tempo com suas crianças.

— Quem vem lá! — exclamou ele, daquela mesma cadeira de madeira, o sorriso em seu rosto parecia o mesmo, mas trazia algo diferente que eu não conseguia identificar tão facilmente. — Ricardo, traga outra cadeira aqui para fora e uma xícara de café. — falou para dentro da casa. — Temos visita.

Em alguns instantes, o garoto chegou trazendo a cadeira e mal cheguei na varanda rudimentar, pude sentar ao lado de Rodrigo. A filha mais nova trouxe o café e logo correu de volta para dentro. Meu amigo estava com a perna ferida enfaixada e apoiada numa almofada sobre o banquinho de três pernas, sua xícara de café já tinha acabado e o jornal ao seu lado era do dia anterior.

— Olá, homem da cidade. Como vão os prédios e bondes?

— Os mesmos de sempre. E por aqui?

— Tudo crescendo na mesma lentidão.

— Trouxe um jornal de hoje.

— Sempre soube que você era um bom amigo. — Ele sorriu e estendeu a mão para receber o jornal que tirei de debaixo do braço.

— E a perna?

— Doendo um pouco, mas é normal. Quer dizer, quem leva uma estambocada dessas e acha que não vai doer, não é? — Ele folheou o jornal distraidamente. — Me fala, amigo: como tem passado?

E eu apenas comecei a falar sobre os últimos dias que se passaram sem que nos encontrássemos enquanto ele comentava também sobre o que lhe tinha acontecido, falando das coisas que seus filhos faziam e de como estava se seguindo a recuperação, que mal podia esperar para voltar a trabalhar, não suportava mais ficar ali parado vendo a esposa se matar de tanto serviço para conseguir sustentar a casa enquanto ele não ficava bom da perna.

Fiquei lá por umas boas horas, apenas jogando conversa fora, após o almoço, aprontei-me para partir no primeiro trem da tarde. Com suas bengalas, Rodrigo me acompanhou até o batente da varanda.

— Acho que vou passar algum tempo sem vir aqui. — falei, antes de partir, colocando o chapéu.

— Por?

— Meu pai anda me ocupando com umas coisas... acho que esses dias não vai ser tão simples fugir dele. Temo que vou acabar passando mais tempo do que gostaria na loja.

— Eu já disse a você, Hélio: junta tuas coisas, raspa a conta do banco e dá no pé. Você é homem feito, sozinho, não deve nada a ninguém, não tem nada a perder. E viveria com muito mais paz se fizesse isso.

Balancei a cabeça, escondendo as mãos nos bolsos.

— Eu queria, mas não posso, Rodrigo. Você sabe.

— Não, eu não sei. Por que não pode?

— Porque... bem... — Eu também não tinha uma boa resposta para aquilo. — É complicado de explicar e está na minha hora. Ou vou acabar perdendo o trem.

Rodrigo estreitou os olhos para mim, muito atento. Se demorou assim em silêncio por alguns segundos, ponderando o rumo da minha resposta.

— Tudo bem, dessa vez você escapa, mas quando vier, daqui a sabe Deus quanto tempo, vai me contar esse porquê.

— Claro. — respondi, numa confiança que não tinha de verdade. Ao menos teria bastante tempo para pensar naquela resposta. — Te vejo em breve, amigo.

— Até lá. — Ele acenou com a cabeça enquanto eu me afastava para o portãozinho de madeira.

Aquela foi a última vez que vi Rodrigo relativamente bem. Só o encontrei com vida uma vez mais, já acamado, febril e frágil. Dois dias antes dele ceder aos resquícios da guerra.
Será que os que morriam em casa também estavam nos números de vítimas? Será que seus nomes seriam lembrados com o mesmo fervor dos que padeceram em combate? Ou seriam esquecidos? Deixados à mercê dos tempos, de escanteio da história que ajudaram a construir? O que seria pior: deixá-los como heróis sobreviventes e vencedores numa batalha que não os pertencia ou somá-los ao montante de maculados ceifados por ela?

— Tudo bem, Hélio? — perguntou Jacinta, da porta do banheiro, calçando os pés. Anuí, voltando a mim e percebendo que não conseguira fazer um nó certo na gravata.

— Sim, estava apenas pensando. — Jacinta caminhou até mim quase sem fazer barulho no piso gasto.

— No que estava pensando? — perguntou, desfazendo o nó mal laçado da minha gravata para refazer.

— Em Rodrigo. Acho que é.… inevitável.

— É, sim. Muita saudade? — concordei, sentindo as memórias apertarem o coração como uma jiboia se enlaça em uma presa. Jacinta terminou o nó e olhou-me nos olhos. — Não precisa esconder suas lágrimas de mim. Elas não vão fazer você mais fraco, apenas humano.

Não respondi imediatamente, comprimi os lábios e apenas abracei a moça que não hesitou em me envolver com força, abraçando-me como se fosse capaz de roubar de mim toda a dor e a saudade.

— Vamos lá. — ela chamou, depois de um curto espaço de tempo, afastando-se e enxugando meu rosto com carinho. — Não podemos perder o trem.

Finalmente saímos de casa, no primeiro trem da manhã.

A igrejinha do interior estava deliberadamente cheia para a missa daquele primeiro ano de morte do herói de guerra que a maior parte das pessoas ali viu crescer. Esposa e filhos choravam no primeiro banco, acolhidos pelos parentes mais próximos. Jacinta e eu sentamos num dos bancos mais afastados e ela segurou minha mão durante toda a cerimônia enquanto minha mente agitada e confusa não conseguia assimilar uma sequer das palavras do padre no altar.

Os filhos de Rodrigo estavam bem maiores do que eu lembrava. A garotinha que costumava me trazer a xícara de café com um sorrisinho tímido tinha os olhos vermelhos de lágrimas pesadas e o rapazinho forte que carregava as cadeiras de madeira e levava as muletas do pai sempre que ele precisava tinha um olhar pesado que não parecia pertencer a uma criança daquela idade. A viúva com seu véu preto, limpava os cantos dos olhos com cuidado e discrição, as mãos sempre voltando para os ombros dos filhos, trazendo-os para a segurança de suas asas como um passarinho guardando seus filhotes da tempestade. Mas ela não conseguia escondê-los da dor em seus corações infantis. A dor de perder um amor que se despeja sobre si com uma torrente maior que o próprio apresso pela vida. Um amor que parece sobreviver apenas para machucar após a morte.

Foi a missa mais longa de toda a minha vida.
E ao final dela, falamos brevemente com a família antes de sairmos da igreja. Meus ombros pareciam pesar como chumbo, será que Atlas tinha mesmo posto o mundo sobre eles?
Para minha infelicidade, o trem estava incomumente cheio, não conseguimos acentos lado a lado, ficamos um na frente do outro e eu não tive a sorte do lugar da janela. Quando me dei conta, a moça sentada naquele lugar, querendo dormir, começou a fechar as janelas e cortinas ao seu redor.

Permaneci impassível em meu lugar, como se ignorante aquele fato enquanto ouvíamos a locomotiva rasgando o trilho de metal. Mas em apenas alguns minutos comecei a suar e posso dizer com quase total certeza que isso não tinha a ver com o abafado do vagão.

Tentei fechar os olhos por um momento, como se também fosse dormir, e ao fazer isso, a imagem que dominou a minha mente foi aquela lembrança do dia em que partimos.

Vagões abafados demais, com homens demais. Todas as janelas lacradas e cortinas fechadas como se escondessem fugitivos. Os outros rapazes murmurando sobre a estranheza do momento, o medo tomando de pouco em pouco cada um de nós, porque ninguém sabia o que estava acontecendo, ninguém sabia para onde estavam nos levando e nem que diacho de treinamento era aquele. Acordamos no Capistrano e fomos ordenados a entrar naquele trem sem saber para onde ou o que estava nos esperando quando saíssemos de lá.

Houve um diminuto rumor entre alguns que devíamos estar indo para a guerra, já que, depois do desfile de despedida que tinha acontecido há alguns dias todos esperavam por isso. Outros argumentaram que eles não nos fariam partir sem que soubéssemos disso, sem que pudéssemos nos despedir de quem ficava...

E naquele dia Rodrigo forçou um sorriso para mim e tentou ser otimista e engraçado.

— Depois dos barracos do Capistrano, o que nos espera não pode ser tão ruim. Nenhum monstro poderia me assustar mais que aquela pilha de moscas nos ovos gosmentos.

Nós não éramos exatamente amigos naquela época, mas acho que isso foi um dos degraus que contribuiu para que fôssemos. Sorri com ele e concordei, então tentamos tornar a viagem em algo mais leve daí para frente.

Mas aquela foi a primeira vez que a guerra me fez sentir medo. E daí para a frente, tudo só declinou, crescendo como uma bola de neve ao descer um monte.

E agora eu estava outra vez em um trem sem ver nada do que se passava fora dele.

Aquilo estava me deixando nauseado, senti uma mão segurar a minha. Ao abrir os olhos vi Jacinta na minha frente, olhando-me numa tentativa de entender o que estava acontecendo. Apenas a encarei, não poderia lhe contar aquilo agora. Por um momento, meu olhar vagou dela para a janela e para ela outra vez e ela pareceu entender tudo.

— Poderia abrir a janela, por favor? — pediu à moça que estava sentada ali. — Fico enjoada em trens, mas me sinto melhor se a janela estiver aberta.

A moça, meio a contragosto, abriu, fechando apenas um pouco a cortina. E finalmente voltei a respirar. Encarei a minha esposa feliz por tê-la ali. Eu não tinha mais Rodrigo, mas tinha Jacinta e sabia que ela sempre cuidaria de mim. Afinal, ela era meu infinito.

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