Capítulo 27

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Eu não acreditei quando Ana chegou na padaria dizendo que tinha sido melhor do que imaginara, muito menos quando lhe perguntei do que estava falando e ela me contou a história toda. Aquilo que estava planejado há semanas e eu nem sequer desconfiara.

Então quando fui para casa, já pretendia questionar Jacinta sobre aquilo e, principalmente, porque ela não me dito nada. Eu não ia brigar, mas quando cheguei lá e ela começou a falar irritada por conta das coisas da casa, não pude deixar de me exaltar também.

— Responda. — pedi, quando ela ficou um bom tempo quieta depois da pergunta.

— Eu não ia contar. — ela admitiu. E isso só me irritou mais. Então ela realmente faria aquilo pelas minhas costas? Ia sair para ter chás da tarde com Fátima Castelo depois de tudo o que ela tinha feito comigo?

— Que ótimo! — rebati, com mais ironia do que desejava, voltando para a cozinha e olhando para ela, a mesa entre nós enquanto Jacinta mexia nas panelas. — Por quê?

— Eu só queria descobri o que ela queria de uma vez por todas.

— E nem pensou em me contar?

— Ela não queria que você soubesse.

— Estão tão amigas assim agora? Guardando segredos?!

— Não mude a conversa. Você sabe que não é assim. — ela rebateu, procurando os pratos no armário, mas vendo que eles estavam divididos entre a pia e a mesa. Só o dela e o que colocava os ovos estavam lavados.

— E como é, em? Porque realmente não estou entendendo. — ela não me encarava, concentrada demais em lavar a louça. Dava para ver o quanto estava irritada pelo modo como o vidro batia na pia, tilintando mais do que o necessário. — O que mais está me escondendo? Achei que estivéssemos nisso juntos.

— Eu também achava isso, mas estou realmente cansada de ser empregada na minha própria casa. — respondeu, colocando os pratos na mesa com mais força do que deveria. Um deles se quebrou e caiu em cacos para todos os lados. — Droga! — ela exclamou, recolhendo a mão rapidamente. Vi sangue.

— Você está bem? — perguntei, preocupado, contornando a mesa.

— Estou, foi só um corte. — respondeu, ríspida, abrindo a torneira e tentando lavar o sangue.

— Deixa eu ver.

— Agora quer ajudar? Pensei que eu era uma traidora, que trama pelas suas costas.

— Eu não disse isso. — respondi, em um tom baixo, preocupado e um pouco culpado.

— Não com palavras, mas deu para entender muito bem. — Ela fez uma careta quando a água bateu no corte fundo. Por um momento, a raiva desapareceu do seu rosto para dar lugar à dor.

— Por favor, deixa eu ver isso. Está sangrando muito.

Resistente, ela me deixou olhar. Não nos falamos enquanto eu conferia se não tinha ficado nenhum caco de vidro no corte, nem quando limpei e enfaixei a ferida. Continuamos quietos depois que a cozinha foi limpa e comemos sem olhar um para o outro.

Na hora de dormir, ela foi se deitar mais cedo, e virou para a parede. Mas eu também ainda estava chateado demais, não poderíamos ficar na mesma cama se cada um quisesse seu espaço, então deitei no sofá. Ela não reclamou.


***


Eu não tinha tido realmente muitos amigos quando estava na Itália. Mas é impossível você não ficar próximo de alguém quando veem a morte de perto juntos tantas vezes. Então, além de Rodrigo, havia 3 ou 4 rapazes com quem eu geralmente falava, embora nenhum deles fosse tão próximo quanto Rodrigo.

Um desses rapazes era o Antônio, ele tinha vindo no segundo navio, era de família alemã vinda ao Brasil há duas ou três gerações, não falava o português muito bem e nós dois vivíamos brigando. Na verdade, após um tempo, meio que brigávamos por tudo, só éramos realmente aliados quando estávamos no campo de batalha.

Em um dia, tínhamos brigado porque ele tomou a minha porção da ração, os outros rapazes precisaram nos apartar, por pouco não saímos no murro. Pensando bem, acho que eu não teria agido da mesma forma se fosse em outro momento, mas quando estávamos lá... bem, tudo parecia muito instável, muito extremo, talvez toda a tensão em que vivíamos submersos cobrasse seu preço, afinal.
No dia seguinte, avançamos em mais uma investida e Antônio foi atingido em cheio, caiu bem ao meu lado. Ele gritou por ajuda, desesperado. Tenho certeza que chamou por pessoas que não estavam ali, como a sua mãe. Não o julgo, na hora do desespero fazemos coisas que somos incapazes de explicar.
Dei um jeito de puxar ele comigo enquanto recuava, se conseguisse chegar ao acampamento e encontrar um médico... talvez desse tempo.

O chão era irregular, havia uma gritaria exaustiva para todos os lados, parecia que o próprio ar estava gritando ou atirando, afinal era apenas que ouvíamos: os gritos e os tiros. Também não era difícil encontrar corpos no caminho, o difícil, na verdade, era não pisar neles enquanto seguíamos.

Não tenho certeza, mas pode ter sido pela dificuldade do trabalho, sei que logo Antônio começou a parecer mais pesado e, quando parei para olha-lo, a alguma distância do caos, perto o suficiente para os sons da morte ainda serem assustadores, o rapaz estava terrivelmente pálido, a despeito dos filetes de sangue vibrantes que escapavam pelos seus lábios e da mancha escura que em seu uniforme se alastrava como um redemoinho devorando tudo ao seu redor, tomando posse de sua vida como se ela lhe pertencesse.

— Antônio, fica acordado! — gritei, me abaixando para ver seu estado melhor. — Ei! Não fecha os olhos!

Ele tentou falar, mas não conseguiu, segurou minha mão e a apertou com uma força que foi diminuindo rápido demais, assim como o desespero em seus olhos muito claros conforme eles ficavam dispersos e confusos. Até que se tornassem completamente desfocados e estáticos e sua respiração cansada cessasse.
Eu segurei o corpo dele em meus braços e chamei seu nome várias e várias vezes, mas ele não reagia. Eu não sabia o que mais podia fazer, olhei ao redor, mas não via opções quanto ao que me restava e aos poucos o desespero daquela desesperança começou a se apossar de mim.

De modo que quando senti a mão em meu ombro, quase caí do sofá.

— Sou eu. — a voz de Jacinta era suave, leve. — Está na hora de levantar, ou vai se atrasar. Vem, já fiz o café.

Bonifácio ainda estava dormindo quando saí de casa, Jacinta e eu nos separamos no ponto do bonde, onde cada um sempre ia para um lado. Nos beijamos quando nos despedimos, mas não foi a mesma coisa de sempre. Pela primeira vez, foi só um beijo.

Mesmo no trabalho, eu só conseguia pensar em todas as coisas do dia anterior, imerso em uma confusão de sentimentos que me tiravam da tristeza por ter brigado com Jacinta, para a culpa pelas coisas que disse, até me embalar no conflito de motivo que a levou a falar com minha mãe e do porquê de Fátima querer falar-lhe.

No horário do almoço, pedi licença a Emílio e disse que iria resolver um assunto pessoal, mas voltava antes do horário de descanso acabar. Eu já tinha andado por aquelas ruas vezes o suficiente para conseguir fazer o percurso nesse tempo.

Pensei, sinceramente, em não bater à porta, mas o fiz mesmo assim. Eu conhecia os passos, ao menos estaria mais preparado se soubesse quem enfrentaria. Guardaria o elemento surpresa para mim, não deixaria essa ser uma dádiva deles.

Foi Fátima quem veio à porta. Perfeito.

— Hélio! — Seus olhos se arregalaram de surpresa pouco antes que ela me abraçasse com força. Não retribuí o gesto.

— Será que podemos conversar?

— Claro, claro. Entre, meu filho.

Ela não demorou em ir para a sala, sentando-se na poltrona de sempre. Ocupei a outra e observei sem nenhuma credulidade minha mãe olhar-me com encantamento.

— Que bom te ver, Hélio. Estava muito preocupada. Ah, meu pobre filho! Tão suado e sujo.... Isso não é coisa para meu menino.

— Por que foi atrás da Jacinta? — perguntei, sem mais rodeios. Fátima mudou a postura, se ajeitou no seu lugar e desviou o olhar de mim. Pousou as mãos no colo antes que voltar a falar comigo, muito mais séria.

— Ela te contou?

— Não. Outra pessoa me disse. Por que fez isso?

— Era o único jeito de realmente saber de você. Para ser sincera, até o último minuto, não tive certeza se ela viria. Mas até que é corajosa, admito.

— Você nem imagina o quanto... Mas você me colocou para fora, disse que não era mais seu filho, então porque queria tanto saber de mim ao ponto de ir atrás da minha esposa pelas minhas costas?

— Seu pai fez essas coisas hediondas, não eu.

— E por acaso você não concordava com ele?

— Só porque não era a maior entusiasta do seu casamento, não quer dizer que te colocaria para fora de casa por causa dele. — Era injusto que só por ela falar algo assim eu já ter um pouco de esperança e olha-la de outro modo. — Até que é uma mocinha bastante requintada para a raça dela.

— Não fale assim.

— Assim como?

— Com todo esse desprezo. Como se fosse melhor que ela só por causa da sua cor de pele. Meu melhor amigo era um homem negro, minha esposa, é uma mulher negra e eles me ensinaram muito mais nos meses que estive com eles do que a senhora fez a vida toda e se tem algo que aprendi com eles, é que a cor de pele não tem nada a ver com caráter. Então eu gostaria que não insultasse ela.

Fátima me analisou, não sei o que estava procurando, não sei o que estava pensando, tudo o que sei é que me encarava em um silêncio comprido.

— Onde errei tanto com você, Hélio? Onde o magoei tanto? E não me fale das cartas, vocês já deixaram isso bem claro.

— Você só não esteve lá, mãe. Nunca. Na maior parte do tempo você só não fez nada. — admitir aquilo para ela, trazia um alívio enorme, como se eu finalmente pudesse respirar normalmente. — O que queria saber com minha esposa?

— Acredite ou não, Hélio, eu não estou do lado do seu pai dessa vez. Sim, o que você fez foi errado, mas não justifica a reação dele. De qualquer forma, você ainda é nosso filho e eu sabia que se o chamasse até aqui você não viria, muito menos o seu primo e eu precisava de alguém que me dissesse a verdade sobre você. Ela era minha melhor opção.

— O que concluiu, afinal?

— Ela, ao menos, está realmente apaixonada. — respondeu, como se falasse de um detalhe irrisório. — Te defendeu com sete pedras na mão quando ameacei dizer qualquer coisa. Mas, e você, meu filho? É feliz com ela?

A pergunta me machucava um pouco. Fazia-me lembrar da briga, do sonho que me despertara. Da culpa de não me desculpar, de não resolver as coisas e, pela primeira vez desde que Jacinta entrou na minha vida, senti aquela vontade avassaladora de ir para casa. Senti saudades mortais do infinito.

— Como nunca fui com mais ninguém. — falei, por fim. — Ela é tudo para mim, mãe. É ela que me fez ficar vivo de novo.

— Então, fico satisfeita por ela ter aparecido, seja como for.

A encarei com novos olhos, procurando sinais de deboche ou ironia. Mas não os encontrei.
— Eu também.


***


Se a ideia não fosse tão absurda, eu teria certeza de que aquela mulher que vi falando com Bonifácio no barzinho quando voltava ao trabalho era Dinah Lacerda. Mas passei por lá rápido demais para ter certeza. Se era, a pergunta da vez era: como ele tinha finalmente conseguido conquistar a moça?

Quer dizer, da última vez que chequei, ela tinha amassado as flores que ele lhe dera depois que citou a letra de uma música ridícula para ela achando que a moça gostaria.

Tentei me prender nessa suspeita para não pensar demais na noite anterior, até que às cinco da tarde, disseram que uma cliente tinha ligado pedindo que entregassem uma encomenda de doces no apartamento dela e pagaria muito bem se fizessem isso o que foi o suficiente para convencer Emílio a me mandar para a entrega.

Saí de bicicleta o mais rápido que podia até o endereço, subindo as escadas até o terceiro andar, onde ficava o apartamento. O prédio ficava numa parte valorizada do centro, onde as construções custavam uma boa moeda. Quando bati à porta, ainda um pouco cansado e anunciei a entrega, a pessoa demorou um pouco para abrir, sem nem responder.

E olhando para mim, meio surpresa e desconfiada, estava a minha esposa.

Ela olhou de mim para Dinah às suas costas.

— Que bom que chegou, Hélio, obrigada por trazer a encomenda. Deixe em cima da mesa. Jacinta vai te entregar o dinheiro da entrega depois, vou deixar vocês dois conversarem.
Foi o que a moça respondeu, saindo a passos rápidos e me empurrando para dentro antes de fechar a porta. Em silêncio, deixei a caixa de doces sobre a mesa e voltei-me para Jacinta.

— Você sabia disso? — perguntei, ao que ela balançou a cabeça.

— Uma armação gatuna.

Apenas olhamos um para o outro, a alguma distância, sem conseguir desviar o olhar em nenhum momento.

— Desculpe. — fui o primeiro a falar. — Pela bagunça, pelo descuido... E principalmente pelo que te disse.

Ela balançou a cabeça veementemente, como se aquilo não fosse tão importante.

— Tudo bem. Eu só... Estava tão cansada que não consegui ser paciente. Desculpe por não ter te contado sobre o encontro com a sua mãe. Achei que se não contasse, você não teria que se preocupar com isso, mas estava errada. Desculpe.

— Não tem problema. Eu fiquei muito irritado. Tudo o que envolve eles, me tira do sério, mas eu não tinha que descontar em você. E eu prometo que vou mudar, que não vou ser mais tão descuidado, afinal, você trabalha tanto quanto eu, não é justo que tenha que fazer tudo sozinha.

— Obrigada. Prometo que não vou mais te esconder essas coisas. Nunca tivemos segredos e eu não quero começar agora.

Anuí, selando aquele acordo. A verdade é que por mais que nós fôssemos realmente apaixonados e nossas almas se conhecessem há muito tempo, não conhecíamos tão bem assim nossas partes mortais e era apenas lidando com elas e aprendendo com nossos erros que conseguiríamos realmente ter um infinito só nosso.

— Estamos bem, então? — perguntei, apenas por garantia.

— Estamos, sim.

Não teve um que foi primeiro, nós dois caminhamos juntos na direção um do outro e nos encontramos no meio da sala, sob a luz amarelada que caia da janela. Foi um abraço único, encharcado de sentimentos e saudade, como se tivéssemos passado muito tempo longe ou estivéssemos nos reconhecendo finalmente no meio de uma tempestade.

— Nunca mais quero brigar com você, isso é horrível. — ela falou, ainda me abraçando.

— Nem eu, quase enlouqueci no último dia e quando você se machucou com aquele prato...

— Estou bem agora. Você teve pesadelos a noite? — Ela olhou nos meus olhos para fazer a pergunta. Apenas anuí. Ela me abraçou forte de novo. — Me senti culpada quando acordou assustado. Fazia muito tempo que não tinha pesadelos.

— Tudo bem. — garanti, me afastando um pouco para olhar para ela e para seus olhos molhados de lágrimas. — Estamos juntos de novo agora, nada pode nos derrubar. Nem pesadelos. Não foi o que prometemos?

Ela assentiu, sem deixar de olhar nos meus olhos. Acariciei por um momento sua bochecha e ela deitou o rosto ao meu toque, segurando minha mão com carinho. Ergui levemente seu rosto para poder beija-la. E finalmente tudo estava certo outra vez. Estávamos nas estrelas. Estávamos muito longe da sala do apartamento de Dinah quando fui espalhando beijos pela pele de Jacinta.

A cada segundo ali, o mundo parecia mais distante, suas dores, incapazes de nos alcançar, porque a cada pequeno gesto de entrega que partilhávamos, éramos mais fortes e as coisas daquele mundo que tentavam nos separar perdiam mais uma empreitada. Por isso, só precisávamos estar ali naquele momento, um com o outro e isso seria a nossa forma de vencer. 

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