Capítulo 22

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Acho que eu tomei café devagar demais, isso foi um erro tremendo, porque o resultado é que eu estava atrasada. E a dois passos de finalmente sair, ainda encontrei as meias jogadas perto da mesinha. Eu tinha certeza que ia dar tempo. Tinha conseguido acordar cedo o suficiente para deixar tudo lá em ordem antes de sair, levar um par de meias não ia me atrasar mais. Joguei as meias no cesto ao som dos roncos do trator enferrujado, digo, do Bonifácio e corri porta à fora.

Corri pelo caminho todo até o ponto onde pegava o bonde e por pouco ainda cheguei a tempo. Apenas quando suspirei cansada lá e vi o cobrador mais a diante percebi que estava sem minha bolsa.

— Pombas... — sussurrei, para mim mesma, arregalando os olhos.

Dentro da bolsa, além do dinheiro para as passagens de ida e volta, estava a carta que eu ia levar para o correio e a que tinha chegado que coloquei lá dentro na carreira, sem nem abrir, além da lista de compras do que estávamos precisando, já que ia fazer as compras da família Lacerda, ia aproveitar para fazer as nossas também.

A minha sorte é que a senhorinha que estava sentada ao meu lado percebeu algo e perguntou se estava tudo bem. Expliquei sobre a bolsa e ela disse que pagaria a minha passagem. Agradeci e desci no meu ponto correndo.

Bonifácio saia de casa às nove. Se eu conseguisse fazer o café bem rápido, poderia pedir à Dinah para usar o telefone da casa e pedir para ele levar minha bolsa.

— Valei-me que hoje ela tá ligada no 220. — comentou Dinah, chegando na cozinha quando eu estava virando os ovos e tirando a cuscuzeira do fogo.

— Hoje o dia tá curto. Será que eu posso usar o telefone para fazer uma ligação, Dinah?

— Claro, sem problemas. — Ela abriu o armário, pegando dois potes e uma panela rasa.

— É o que, senhora? Diz que eu faço rapidinho, se preocupa com nada não.

— Fique tranquila, Jacinta. É o leite do Daniel, eu mesma faço, sei como ele gosta.

— Tem certeza? — perguntei, olhando para ela por cima do ombro enquanto colocava o cuscuz em um prato.

— Absoluta. Me passa essa colher aí por favor.
Entreguei a ela. Até que eu gostava de Dinah. Ela era muito diferente da mãe. Passava algum tempo na cozinha comigo, conversava, sempre fazia alguma coisa quando Daniel estava birrento e nunca gritava comigo. Talvez isso fosse o mínimo, mas quando a maioria das pessoas esquece até disso, quem agia assim já era de uma diferença enorme. E Dinah tinha até umas coisas meio esquisitas para uma moça de família. Ela entendia muito bem como fazer cada uma das tarefas da casa, não só ordenar que elas fossem feitas, era sempre muito habilidosa e prática.

Quando todos já estavam na mesa e o barulho dos talheres era alto o suficiente, escorreguei para a sala de entrada onde ficava o telefone e disquei o número da pensão. A dona não demorou em atender, deixei recado e logo desliguei.

— O que você estava fazendo? — perguntou dona Rosália, na porta, cruzando os braços para mim. — Estava no telefone?

Apertei as mãos com força, sem resposta como uma criança pega no flagra. A ligação nem demorou dois minutos, como aquela mulher terminou de comer tão rápido para me espiar?

— Mãe? — chamou Dinah, na mesa. — O que foi?

— Essa negrinha usando o telefone da casa, acredita?

— Ela me pediu, mãe. E mesmo que não tivesse, foi só uma ligação.

— Uma ligação? É assim que começa. Daqui a pouco não faz mais nada nessa casa, vai só ficar aí, pendurada nesse telefone. Já dizia minha mãe: dê dinheiro, mas não dê ousadia.

— Deixa a moça, Rosália, é só uma ligação. — insistiu o senhor Clóvis. — A comida está servida, a casa está em ordem, ela está trabalhando direitinho.

A mulher não protelou mais, apenas me encarou com olhar de poucos amigos quando passei rapidinho por ela de volta ao trabalho.
O dia já estava naquele vai e vem e ainda nem eram oito horas. Me ocupei com a louça, lavando tudo o que tinha sujado e depois tirando o que tinha ficado na mesa para limpar também. Não demorou para que o Rosália e Clóvis saíssem e Dinah se trancasse no seu quarto como toda manhã. Eu estava bem ocupada limpando a sala de visitas quando o pequeno veio correndo até mim. Já tinham mandado aos porcos a timidez.

— Jaci! — clamou, enquanto corria para me pegar. — Jaci!

— Que foi, pequeno? — perguntei, tentando escapar dos seus bracinhos que envolviam minhas pernas.

— Tô com fome.

— Tua irmã não te deu leite?

— Mas tô com fome de novo. A Nan não deixa eu entrar quando estuda. Só se for muito importante. Ou se você mandar.

Suspirei, desistindo de passar pano por enquanto. Soltei as mãos do garoto que logo levantou os braços para ser tomado no colo. Peguei ele e fui para a cozinha.

Decidi machucar uma banana com leite, que era mais forte. Ainda estava descascando a banana quando a campainha tocou. Deixei as coisas lá para ir ver quem era, mas só bastou dar dois passos para fora da cozinha que o menino abriu o berreiro e veio correndo do banco onde eu tinha colocado ele.

— Jaci!

— É só um minutinho, Dani. Tenho que ver quem tá na porta. — Era difícil andar com o menino agarrado nas minhas canelas. — Solta a Jaci.

— Não!

— Daniel. — chamei, tentando pegar ele no colo, mas pense num menino forte, estava já me derrubando.

A campainha tocou mais uma vez, a pessoa lá fora estava impaciente. Antes que o menino me derrubasse, Dinah desceu as escadas com seus passinhos ligeiros e passou por mim.

— Acalma ele, Jacinta, deixa que eu abro a porta. — falou, já na soleira.

— Você venceu, Dani, vamos lá. Vamos terminar seu lanche.

Ele parou um pouco de chorar e me olhou.

— Vamos?

— Vamos. Vem. — Ofereci os braços para ele que, todo desconfiado, aceitou vir para o colo e ser levado de volta para o banco na cozinha.
Crianças naquela idade tinham um humor terrível, mas eu não julgo elas. Deve ser muito confuso deixar de ser bebê, já pensou? De repente as pessoas não querem mais fazer todas as suas vontades e, na verdade, querem mais é que você faça as delas. Eu também me jogaria no chão e choraria no lugar dele.
Quando ele estava finalmente comendo satisfeito e eu guardava as coisas da cozinha, Dinah apareceu.

— Era um rapaz, mandou te entregar isso.

— Minha bolsa! — comemorei, indo em um pulo até ela e pegando a bolsa com avidez. Não queria perder ela nunca mais! — Ah, que ótimo!

— Era seu marido?

— Depende, era bonito? — perguntei, levando a bolsa para o gancho da dispensa.

— Era.

— Ah, então era o nosso primo Bonifácio.

Dinah segurou um sorrisinho.

— Seu marido não é bonito?

— Ele é um homem bom. Muito gentil. Simpático, esforçado, trabalhador... o amor da minha vida, mas, infelizmente, a beleza não é uma das suas virtudes.

Aquilo fez Dinah rir muito.

— Ah, Jacinta, coitado. Se ele é tão feio assim, o que foi que você viu nele de primeira?

— Ele não é feio. — corrigi, pegando na dispensa uma tangerina e levando para a cozinha. — Ele só não é uma dessas estrelas de cinema. E o que eu vi nele... — Suspirei, tomando um tempo para pensar como poderia resumir tudo aquilo. — Vi o infinito. Vi tudo o que a gente já tinha vivido antes mesmo de se conhecer... vi todo o futuro e todo o passado de uma vez só.

— Assim? De primeira? — concordei com a cabeça, enquanto colocava os bagos descascados da tangerina numa tigela.

— No segundo em que olhei para ele pela primeira vez.

— Estão juntos há muito tempo?

Sorri, sem olhar para a moça.

— É uma história engraçada, um dia desses eu te conto. Aqui, o teu lanche também. — Arrastei a tigela para ela que me olhou sem entender.

— Eu não pedi lanche.

— Mas já está na hora de comer. Pega e não amola.

Sai de lá e deixei Dinah sozinha com todas as suas teorias sobre o meu casamento. Nas minhas histórias inventadas de faxina, mesmo as com personagens que não existiam, eu nunca tinha imaginado algo como Hélio e eu. Nunca cheguei nem perto daquela coisa insana que éramos, mesmo com minhas narrativas fantasiosas e para lá de dramáticas, nunca cogitei algo como aquilo que nasceu entre nós. Pensar nisso me fazia sorrir mesmo quando tinha que fazer aquele trabalho cansativo.
E era engraçado que desde que casamos, coisa de dois meses antes, minhas histórias tinham mudado um pouco e só naquele momento eu vinha percebendo isso. Minhas mocinhas estavam crescendo e mudando, estavam em outro momento da vida, assim como eu.
Enquanto Dinah lanchava, sentei na varanda dos fundos para ler a carta que tinha chegado.
As notícias de casa não eram muito boas. A carta que veio foi escrita por Emanuel, como imaginei. Ele disse que a mãe estava furiosa, que nem quis saber o que eu dizia na nova carta, que só faltou rasgar as que Jamily e eu deixamos naquele dia.… e não só ela. José também estava uma fera, o que não era surpresa para ninguém, já que ele se irritava com tudo. Mas pelo menos Emanuel conseguiu o endereço da nossa irmã. E, falando nele, foi o único que realmente não me condenou. Disse apenas que gostaria de saber da trama antes para se despedir melhor de Mily, mas que estava tudo bem se a gente estivesse feliz com o que fizemos. As crianças, aparentemente, também não se irritaram tanto assim, só nos primeiros dias porque levei Jamily comigo e esse não era o combinado, mas depois a saudade tomou todo o espaço do rancor e eles mandaram mil e um recados na carta. Eu escrevi outra de volta, assim como uma para Jamily, aproveitando o tempinho entre uma tarefa e outra.

Antes de sair para o supermercado, passei no quarto de Dinah, para ver se ela ia precisar de alguma coisa. Ela estava penteando o cabelo, se ajeitando para sair.

— Vou com você. — falou, quando perguntei. Os pais dela ainda não estavam em casa. — Tenho que passar na biblioteca e quero ir num lugar também. O Daniel já está pronto, não é?
Concordei com a cabeça, desconfiada de para onde ela ia me levar. Ela apenas começou a guardar tudo o que tinha espalhado enquanto se arrumava.

— Sabe, Dinah, fico me perguntando onde você, menina de família, aprendeu essas coisas. — falei, observando ela dobra a camisa que tinha descartado como se estivesse terminando de engomar.

— Ui, e tu não é de família, não, é? É filha de chocadeira?

Fiz uma careta para ela.

— Você entendeu, Dinah.

Ela abriu um pequeno sorriso e deu de ombros.

— Bom, eu gostava de ficar acompanhando as empregadas daqui quando era criança. Não tinha muito o que fazer, minha mãe estava sempre saindo de casa e elas estava sempre fazendo alguma coisa... então comecei a ficar com elas no dia a dia, para todos os cantos. E como eu não parava de perguntar se não fizessem isso, elas sempre me deixavam fazer as coisas também. Minha mãe sempre brigava por eu fazer isso, mas acabou sendo útil quando... nos mudamos. — O sorriso em seu rosto vacilou quando hesitou, pareceu perdida por alguns instantes, mas logo, logo estava de volta. — É por isso, Jaci. Não tem nenhum segredo. — Eu duvidava. Podia não ter nenhum segredo nas suas habilidades, mas na sua história com certeza tinha, e eu gostaria muito de descobrir o que era.

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