Capítulo 4

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Aquele não era um dia como os outros, tinha certeza. Num dia normal, eu não estaria caminhando pela calçada da casa da dona Quitéria com seu sobrinho de mala sem alça. Mas naquele dia estranho, era isso mesmo que tava fazendo. Talvez fosse por toda essa esquisitice que eu sentia vontade de estar mais perto dele. De ouvir ele contar mais histórias e ouvir mais sobre quem era. Ou isso tinha a ver com aquela coisa do dia anterior, não sei. Mas ele tinha jeito de ser o tipo de pessoa pra quem eu poderia fazer minhas perguntas esquisitas e ter algumas respostas. Mas não eu não queria realmente fazer as perguntas. Não queria estar tão perto. Ainda lembrava do Paulo. E lembrei muito bem disso quando saímos pela calçada depois que decidi, sem conseguir inventar nenhuma desculpa, levar o moço na biblioteca.


De qualquer forma, eu é que num ia puxar conversa. Mas deveria responder se ele fizesse alguma, para não ser mal educada.

- E então, Jacinta, onde você mora? - Era engraçado o jeito que o moço falava meu nome. Como se fosse de alguém muito importante.

- Descendo a ladeira. - Respondi, apontando para o lugar que escondia minha casinha. - Você desce e desce e desce e quando estiver cansado, você desce um pouquinho mais que ainda não chegou...

A sombra de um sorriso apareceu e sumiu muito ligeira na cara dele. Como se não soubesse mais fazer aquela expressão, igualzinho a uma máquina precisando de graxa. Eu queria descobrir como era aquele sorriso. A curiosidade em ver isso me fazia esquecer de não estar perto. Me diz lembrar disso.

- E todo dia você sobe e sobe e sobe...?

- Isso aí. O senhor era da capital, né?

- Sim.

- Já vi uns retratos. Sempre quis ir lá. Parece ser muito bonito. Deve ser supimpa viajar assim. Minha irmã, Jamily, ia amar. Ela gosta de lugares novos, tem muitos desenhos e retratos de outras cidades e países.

- É.... só é muito longe. A impressão é de que chegaremos ao fim do mundo antes de chegar lá.

Sorri. Era uma ideia engraçada. Você entrar em um carro e andar, andar tanto que chegaria onde o mundo termina. Mas, onde o mundo termina? Se ele é redondo, então ele nunca termina. Então o fim do mundo é, na verdade, o começo? Então, qualquer lugar é o final e o começo do mundo?

- Ficou pensativa de repente.

- Ah, desculpe. Só... deixa quieto. - Espantei as perguntas, um tanto envergonhada por ter me perdido na conversa. - Por que o senhor precisa ir à biblioteca?

- Meu primo me chamou para trabalhar com ele lá. Como uma forma de "passar o tempo". - Ele escreveu aspas com os dedos.

- Deve ser um trabalho muito chato depois de vir de uma cidade como Rio de Janeiro. Lá você fazia o quê?

- Oficialmente? Trabalhava com meu pai. Mas, de verdade? Eu ficava só vadiando pela cidade.

- Vocês, jovens que não têm que trabalhar, são tão estranhos! Nem lembro a última vez que saí por aí sem ir trabalhar ou ir na igreja.

- Bom, está fazendo isso agora, não é? E você, desde quando trabalha com isso?

- Ajudando minha mãe, desde os 10. Foi quando meus irmãos mais novos nasceram, minha avó se cansaria muito se tivesse que ficar com todos nós. E a gente recebia uma coisinha a mais por eu ir com ela.

- Entendo. E sozinha?

- Comecei com 14, foi quando eu vim para a casa da sua tia.

- Você não era muito nova?

- Foi como minha mãe me manteve ocupada depois... - Hesitei, tinha falado aquilo rápido demais, tava começando a ir por caminhos perigosos da minha história. É só que era fácil demais dizer as coisas para ele. Ou talvez eu falasse demais.

- Depois?

- Da morte do meu pai. - Minha voz escapuliu bem mais baixa. Senhor Castelo se mancou que era um assunto difícil, porque ligeirinho mudou a conversa.

- Bom, então você faz de tudo hoje? Costura, arruma, fica nas janelas...

Senti as bochechas arderem, então baixei a cabeça e pensei numa coisa engraçada pra dizer, era o caminho mais seguro.

- Olha, eu também toco pandeiro e sei as danças de rua. Mas aceito tudo quanto é de trabalho. Carrego feira, descarrego as caixas de verdura... é só chamar.

- Parece ter uma vida interessante.

- Interessante... - Não deu pra deixar de rir. Ele estava tentando ser gente boa, mas já tava forçando. - O senhor, homem estudado da cidade, já viveu a guerra da Europa, vem dizer que minha vida de mil e um trabalhos é interessante.

- Tenho certeza que a senhorita já viveu muitas aventuras que eu nem sequer sonhei.

- Eu não sou uma senhorita. - Parei na calçada, as mãos apoiadas na cintura, olhando para seus olhos que me desafiaram.

- E eu não sou um senhor. Um pelo outro. - Entronchei as sobrancelhas para ele.

- O senhor é um homem estranho, senhor Castelo.

- Talvez eu seja o mais normal dos homens. A humanidade é que anda estranha demais ultimamente. Por que parou?

- A biblioteca é ali. - Apontei para o prédio depois da esquina. - Vou voltar pra casa, homem normal.

- Bom, então adeus. Muito obrigado por me trazer até aqui.

- De nada. - Encenei um cumprimento que fez ele sorrir bem rapidinho outra vez.

Olhei ele dar alguns passos antes de lembrar que não podia ficar parada ali e muito menos ir atrás dele mesmo que sentisse vontade de fazer isso, eu tinha era um monte de coisas pra fazer.

Em cada passo que dava de volta, ainda me pegava rindo com o absurdo que aquela situação era. Minha mãe nem ia acreditar se eu contasse, e, se acreditasse, ia era me bronquear. E esse era mais um motivo para essa conversa ter sido só uma situação estranha, não uma coisa rotineira.

- Onde é que você estava, menina? - Disse Berenice, assim que coloquei os dois pés pra lá do portão. As sobrancelhas finas dela se curvavam de um jeito que mais pareciam um bordado de meia lua ao contrário na testa.

- Fui fazer um favor para o senhor Hélio.

- E sai assim? Sem avisar? Sem colocar ninguém no seu lugar?

- Não foram nem 20 minutos, Berenice.

- É dona Berenice para você e quem pensa que é para falar assim comigo? Você só está aqui hoje porque eu quero que esteja, então deveria mostrar um pouco de respeito. Agora de volta para o trabalho! E se eu te pegar vadiando de novo, lhe apresento o bilhete azul, gente da sua laia para trabalhar aqui a gente acha em qualquer esquina.

Controlei a cara antes que ela entortasse numa careta bem feia para a mulher bonita. Entrei e na sala já vesti o avental, amarrando com firmeza e catando no bolso o paninho de limpar os móveis, já que tinha terminado com as almofadas antes de sair. Ele já estava bem seco então fui botar mais produto do que ficava na dispensa.

O que se passava na cabeça de Berenice? Era o que eu me perguntava indo para a dispensa. Ela, assim como eu e como qualquer outro que tava sempre correndo naquela casa grande, era uma empregada. Não era a dona da casa, nem era ela quem nos pagava ou tinha pompa de ameaçar ninguém. Ela tinha acabado com um momento tão bom. Era impressionante como conseguia matar um sorriso de uma conversa de dez minutos falando por menos de um. Uma habilidade, tinha que admitir.

- Até parece que ela é a dona Quitéria pra querer falar asneira e sermos obrigados a ficar calados. - Resmunguei, abrindo de supetão a porta da dispensa.

Algumas cenas não devem ser vistas nunca, nunquinha mesmo. Porque se forem, você não vai esquecer mais jamais e vai ser de lascar o cano. São o tipo de cena que quando você estiver a dois segundos de dormir, vão voltar na sua cabeça e aí já era o sono. Ver minha irmã se agarrando como o faz-tudo na dispensa foi uma dessas cenas.

Fechei a porta com um baque e parei, olhos arregalados e o coração saltando de susto.

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