Epílogo

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Não há mais belo que a canção das estrelas
Não há, também, mais eterno
O perigo dela está no sentir
Quem a tem, não quer perde-la,
Teme o dia de ficar sem ouvir
Mas no mundo não há como mantê-la
Por isso, quem dela se afasta
No poder da deusa se devasta
A dilacerante saudade de Jaci
É tudo o que se apossa de si
Até levar de volta para casa

V

ocê precisa saber, meu caro leitor, que não existe infinito nesse estranho mundo mortal em que você provavelmente vive. Coisa alguma que você encontre nele será eterna.

Você pode olhar para uma montanha que viu a vida inteira da mesma forma, seus pais e avós viram da mesma forma e seus filhos, depois que você morrer, provavelmente verão da mesma forma. Então você poderá achar que ela é eterna. Mas mesmo essa montanha, sólida, firme, que atravessou gerações, não é eterna. Em algum momento, ela será corroída, se destruirá. Será algo novo.

Então, que fique claro, meu ouvinte, que nada nessa terra é infinito. Por isso eu não poderia terminar a história dessas duas almas com uma bela cena sua na terra e um "felizes para sempre". Nada dura para sempre na terra, nem mesmo o amor. Por isso não é aqui que a história de Jacinta e Hélio tem o seu final.

Os anos passearam, o tempo correndo dentre os dedos, como quem tenta segurar água com as mãos.

Eles viveram suas vidas, viram o tempo mudar, viram filhos, netos e bisnetos, viram o mundo ser transformado como apenas seres humanos são capazes de fazer, viram, até mesmo, os outros seres mortais se desesperarem por causa de seres assassinos que nem ao menos podiam ver.

E então, Hélio partiu. Foi o primeiro. Quase um centenário. Os homens disseram que ele viveu muito, mas, afinal, o que são 97 anos? Aquela montanha que te falei, levou milhares de anos para chegar ao ponto em que você a vê como montanha e demorará muitos outros milhares para ser outra coisa.

Era o dia da missa de primeiro mês. Os filhos preocupados, deram boa noite a anciã da casa. Três deles estavam lá, os outros chegariam somente para a cerimônia.

Jacinta já tinha a mesma facilidade para se deitar na cama. Aquela sua prisão temporal estava desistente. Todo o seu corpo parecia muito mais pesado, seus braços e pernas a lembravam o peso dos baldes de água que costumava carregar na juventude. Ela sentou com um suspiro, um gemido pelo esforço se prendeu em sua garganta. Seus olhos cansados passaram pelas fotos religiosamente organizadas na cômoda de frente para ela.

A mais recente, há apenas um ano, onde ela e Hélio seguravam um recém-nascido: o segundo tataraneto. A outra foto era de todos os bisnetos juntos. Haviam dezoito na foto, mas eles ainda eram pequenos quando ela foi tirada, Jacinta amava ver os rostinhos infantis que agora já eram quase todos homens e mulheres feitos. Depois, a foto dos netos, naquele natal quando eram crianças e todos foram passar as férias com eles. Dez netos, idades diferentes, rostinhos variados, sorrisos que traziam a mesma alegria infantil. Jacinta sentia uma saudade enorme de pôr aquelas crianças no colo e beijar-lhes as bochechas, agora, eles é que a carregavam quando assim carecia. Então aquela foto, os seis filhos sentados nas escadas da sua casa, apertadinhos, todos de uniforme escolar, cabelos bem penteados, nos olhos infantis aquele brilho de quem ainda vê todo o encantamento do mundo... suas amadas crianças... eram todos avós agora. Mas naquela época.... Ah, naqueles dias em que ela e Hélio sentavam-se na varanda com todos eles, tomando sorvete e ouvindo suas aventuras de crianças. Rindo e deixando a vida ser leve, sem os encargos que os consumiam. Tinha até a foto com a mãe dela quando foram visitá-la, o filho mais novo ainda era de colo e a outra foto de Fátima brincando na varanda com o primeiro neto.

E tinha a última foto, naquele porta-retratos mais antigo, cuja moldura custava em desfazer-se. A foto era completamente amarelada, as cores não eram tão nítidas, mas as lembranças... essas, sim eram tão firmes como que gravadas em pedra. Tinha sido tirada quando eles se mudaram para sua casinha, há tantos anos. Na foto, ela e Hélio eram jovens e eufóricos, seu primeiro filho a caminho. Bonifácio quem havia tirado o retrato.

Jacinta fechou os olhos e voltou àquele momento.

— Vamos, pombinhos, se juntem que eu vou bater um retrato! — Exclamou Bonifácio, empolgado, desprezando as malas no chão que deveriam levar para dentro.

Hélio enlaçou a esposa pela cintura, um sorriso satisfeito nos lábios, cabelos bagunçados pela brisa que dançava ao léu. Ele a beijou exatamente no momento em que Bonifácio tirou a foto.

Os dois estavam tão felizes naquele dia, tão completos... foi um dos seus momentos eternos.

Ao lembrar disso a anciã sentia vontade de chorar. Fazia um mês que Hélio não estava com ela. Desde que se conheceram, há décadas, nunca haviam passado tanto tempo separados e naquele momento ele já não voltaria para ela. Nunca.

Ela deitou, sentindo o vazio ao lado da cama onde seu velhinho deveria estar. Onde ele deveria deitar-se, olha-la nos olhos e chama-la de oceano. E agora o lençol estava vazio e frio.

A viúva relembrava o esposo com lágrimas quando fechou os olhos para dormir, teimosa em deixar aquele turbilhão de sentimentos se apossarem dela outra vez.

Em algum momento, ela dormiu. E os filhos não mais a viram acordar.

Eles também não viram quando a alma ferida e maculada pela saudade finalmente se viu livre. Quem dirá viram quando ela dançou entre os mundos e escapou daquele lugar onde o eterno não existia. Não puderam contemplar a alegria da saudação com a qual ela foi recebida e com que recebeu a outra metade quando mais uma vez dançaram na cantiga das estrelas. E finalmente, aquilo não passaria ao final do beijo, não se desfazeria quando desviassem o olhar, não seria um infinito roubado pelo fim de um abraço...

Não, naquele momento, eles finalmente erameternos como seu amor sempre fora. Finalmente estavam em casa de verdade, semmigalhas e nunca mais precisariam deixá-la.

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