epílogo.

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Aquele mês de Julho perdido no México fora o suficiente para abalar algumas certezas que König trazia firmes em si.

Certezas que demoraram para ser construídas, e que caíram por terra rápido demais, como a muito tempo não lhe acontecia. Não fosse exatamente a sensação de solitude, ou de exclusão. Mas a percepção muito específica de ser o mero espectador de um fenômeno natural, como quem observa a natureza acontecendo tendo plena certeza de que sua presença não interfere em coisa alguma ali.

Ter assistido o desenrolar de Simon e Alma se assemelhava em algo com observar os passarinhos. Vê-los criar ninhos, voar e cantarolar juntos. O afeto crescendo gradativamente, e os olhares conectados. Mas aquela química humana não o fascinava, na verdade, lhe causava uma estranheza e um certo incômodo. Era apenas estranho e desconfortável.

Podia com toda certeza ter se apaixonado por Alma também. Podia tê-la visto antes, e então ela o teria visto e tudo podia ter tomado um rumo diferente. Mas não o fez, e nem tentou.

Ela era linda, divertida, viva demais e fazia todos os esforços para deixá-lo confortável nas conversas que tinham. Se preocupou muito com ele durante todo o tempo que esteve no campanário da montanha, mas König sabia, ou pelo menos descobriu com o tempo, que Alma se preocupava com todos igualmente, e que em questão de sentimentos só lhe interessava o Ghost.

Aquilo não foi um problema, principalmente porque sabia que não era Alma quem idealizava naquelas conversas, nem nos abraços, ou nos gestos. A convivência pode até ter lhe causado uma fagulha de vontade, que foi logo apagada.

Não por ele e nem por Alma especificamente, mas por Veronika. A única a quem ele enxergou durante toda sua vida. A russa.

Veronika não era paradisíaca como Alma, nem era tão explosiva e apocalíptica quanto. Pelo contrário: ela congelava. Seus ombros abertos e mãos assertivas, seu olhar crítico que destrinchava as coisas ao seu redor com uma ironia seca, quase desprezo. Pele branca e leitosa, olhos azuis cristalinos e cabelos lisos, que de tão loiros eram quase brancos. Veronika aos vinte, implacável como uma besta sanguinolenta. Abençoada com um mau gênio que não fazia estardalhaço, e uma malevolência artística e silenciosa, que se parecia com arrogância, prepotência e má vontade.

Fora ela quem roubara seu coração ainda na infância, quando sua família se mudou da Rússia para a Áustria. Ela, ainda aos oito anos, sem falar uma palavra de alemão e sem entender os jogos estúpidos de que as crianças austríacas gostavam, e ele, que tremia só de pensar em falar em voz alta.

Eram Vel e König, o casalzinho silencioso do bairro de Simmering.

Estudavam na mesma instituição de ensino, e frequentavam a mesmíssima escola de música. Ele para tocar piano, e ela para se desenvolver em diversos instrumentos de corda. König odiava o piano, mas Veronika era um prodígio do violino. Os dois iam caminhando juntos pela rua até em dias de nevasca, mesmo que nunca tivessem combinado.

De um jeito estranho, as circunstâncias sempre pareciam arranjar meios de fazê-los serem a única companhia um do outro. A dificuldade da comunicação na infância, o fato de serem os únicos da escola inteira que moravam em certa rua de Simmering. Até o fato de que os instrumentos de corda ficavam guardados na mesma sala que o piano. Passavam praticamente o dia inteiro juntos por acidente, e não trocavam muito mais do que meros olhares tímidos.

Até que numa tarde fatídica, quando ambos tinham seus onze anos, Veronika acabou escorregando na calçada congelada, tropeçou e caiu. Era apenas um joelho ralado, mas König não pensou duas vezes antes de atravessar a rua e ajudá-la. Tão rápido que nem mesmo teve tempo de ficar ansioso ou paralisado de timidez. O nervosismo só veio a tona depois do ato heróico, quando se viu com as mãos frígidas de Veronika encolhidas e trêmulas entre as suas, e aqueles olhos de cristal completamente voltados em sua direção.

Veronika Petrovic tinha o mapa da Sibéria estampado na cara, mesmo que seus traços não fossem do extremo-oriente. Seu nariz era como a ponta dos Urais, e as maçãs de seu rosto eram como a cordilheira de Verkhoiansk, pelo menos era o que ele pensava durante as longas aulas de geografia física.

Ele a assistia tímido, e assim cresceram juntos.

Vel, envernizada numa frieza singular desde que nascera, fora a única pessoa com força o bastante para vencer os bloqueios de König. Defendia-o do bullying que ele sofria dos outros garotos por ser alto, magro e atrapalhado. E também se defendia das ofensas étnicas e racistas que sofria por ser siberiana.

Aos olhos dele, ela era um poço de resiliência, e é por isso que a seguia onde quer que fosse.

König recebera permissão dos pais de Veronika para frequentar a casa dela. A levava para as aulas, aos ensaios, e para qualquer lugar que ela precisasse ir. E Veronika gostava particularmente de quando ele chegava mais cedo para assisti-la tocando. Vê-lo sentado e quietinho exatamente no meio da primeira fileira, apenas assistindo-a com devoção e um amor cheio de ingenuidade. Veronika sabia que poderia namorar König a hora que bem quisesse, sabia que ele seria um bom namorado. Mas não via sentido nisso aos quinze anos, nem aos dezesseis.

Começou a ver somente aos dezessete, quando o rapaz franzino magicamente triplicou de tamanho, e as atividades físicas começaram a dar resultado. König começou a saltar aos olhos das suas colegas de turma, das garotas nas calçadas e até das mulheres casadas, que vinham pedir favores domésticos patéticos ao garoto apenas para tê-lo dentro de casa. Odiava absolutamente todas essas mulheres, e tinha raiva também de König, que não se apercebia da malícia delas e se oferecia cheio de bondade, como um verdadeiro bobo.

Veronika sofria. E ele a cada dia parecia-se mais com os personagens das novelinhas obscenas francesas que ela começara a ler escondida da mãe. O toque dele deixou de ser comum e começou a lhe causar pequenos choques elétricos, bem abaixo da barriga e tudo parecia uma grande tortura perto dele. Ter que esperá-lo terminar as atividades extracurriculares na hora da saída era o pior. Atividades que consistiam em König suado lutando judô, ou König suado correndo em círculos pelo campo da escola. König derramando uma garrafa de água inteira em si mesmo, apenas para se refrescar depois de um treino intenso.

Veronika sofria profundamente, de todas as formas que uma adolescente pode sofrer, e ele sequer parecia notar. König bobo, que não sabia usar de seu potencial para conquistá-la, mesmo que a vida toda tenha sido completamente apaixonado por ela.

Depois de muitos sacrifícios, foi ela quem fez com que romance se desenrolasse, tórrido e abrasador, como são os amores de adolescência. Durando quatro vívidos anos, confusos e intensos, que no final levaram os dois para caminhos totalmente opostos: König alistou-se no exército e se mudou para a Alemanha. Veronika se filiou ao Partido Comunista e deu-se de corpo e alma para a música, a arte e a política.

Foram quase seis anos de silêncio completo, mistério e distância. E não ousaram se procurar. König por receio da indiferença dela, e Veronika porque... Bem, porque não procurá-lo já era sua indiferença aplicada. Mas ela ainda guardava o LP que ele lhe dera no seu aniversário de 18 anos, e ele ainda ouvia a mesma música que por muito tempo ambos chamaram de sua.

edelweiss, edelweiss...

toda manhã você me recebe

pequena e branca

clara e brilhante

você parece feliz ao me me encontrar

edelweiss, edelweiss...

abençoe minha terra natal
para sempre

edelweiss | a könig storie.Onde histórias criam vida. Descubra agora