A manhã chegou, e o meu retorno à pequena localidade onde Veronika ainda descansava, alheia ao que fiz durante a noite no velho galpão, se torna inevitável. Deixo que o restante da equipe se dedique nas investigações sigilosas dos arquivos de arquitetura e planejamento urbano da KGB para que possamos sair daqui de forma segura, nos movimentando por uma Rússia esquecida abaixo de nossos pés.
Retorno em roupas de frio comuns, com a mochila de equipamentos nas costas. Só retiro a máscara na porta do pequeno casebre, e por sorte, quem atende ao meu chamado é a velhinha que nos hospeda. Eu faço uma breve reverência e ela sorri. Sigo escadaria a cima e encontro a porta de meu quarto destrancada.
Meus olhos suaves não se surpreendem diante da visão cativante que recebo, e nem mesmo se perturbam diante da possibilidade de que a velha pudesse ter subido primeiro e encontrado a cena feita para mim. Assim que giro a maçaneta, encontro a armadilha perfeita de Vel.
Sejam as costas tortas e magras, ou as nádegas redondas de Veronika. Nada daquilo me é novo. E ela dorme sobre os lençóis com um pequeno cervo indefeso, nua, descoberta, encantada. Recebendo o sol da manhã em sua pele tão leitosa que quase reluz e se fragmenta. Pêlos louros minúsculos brilhando como pequenos resquícios de glitter sobre ela, cabelos desarrumados, lábios esmagados num desvelo doce, rosados, quentes. Seus pés entrelaçados um ao outro e pendendo parcialmente para fora da cama. Não há travesseiro.
Ela ainda dorme, ou finge bem.
Eu me viro lentamente, fechando e trancando a porta de madeira envelhecida, que range na mesma lentidão com a qual tomo a iniciativa.
Olho para Vel com um resquício de uma maldade preguiçosa, um viço mórbido tremeluzindo em meus sentidos. Dou curtos passos até a beira da cama. Paro somente ao me sentar cuidadosamente ao seu lado, sentindo a cama afundar sob meu peso. Minha mão aberta repousa em seu calcanhar macio, e sobe por seu tornozelo fino e de articulação fraca. Aliso sua panturrilha flácida.
Não consigo pensar em coisas sujas, pois, de uma vez por todas, penso em Veronika além da carne e do espírito. Deixei que a russa se desmaterializasse dos meus sentimentos, assim, numa terça feira qualquer, e a cada dia que passa me sinto cada vez mais longe dela. Talvez todo o furor do reencontro tenha sido uma espécie de luto, a negação pela morte do amor mais monumental que já experienciei.
Talvez eu já não a amasse mais.
— Veronika... — murmuro.
Ela suspira baixinho, me permitindo ver sua caixa torácica subindo e descendo. Cachos loiros perdidos em suas costas, suavemente enrolados nas pontas. Meus dedos escorregando pela pele ainda mais fina, próxima aos joelhos.
Talvez eu amasse a aura do impossível que cercava Veronika. Talvez eu amasse o infinito e o incompreensível, todas as características que a faziam se parecer com deus, uma maldade e um carinho infinitos e que varriam tudo, e que eu já não enxergo. Sua beleza agora aparece um borrão, sua maldade é uma mentira de criança, e sua bondade um desespero silencioso.
— Acorde Veronika... — chamo-a, um pouco mais alto.
— Hm... — resmunga manhosa, se remexe na cama de um jeito desvairado e molha os lábios secos com a língua. Mas logo vejo suas pálpebras tremerem, e aquelas íris claríssimas se acenderem em minha direção, de cenho franzido. Ela suspira sonolenta, observando-me atenta antes de perguntar com a voz rouca de sono — Onde você foi, Rex? — indaga, com uma pontada de suspeita.
Eu suspiro, e lhe encaro com objetividade.
— Organize as suas coisas. Partiremos à meia noite.
É tudo o que digo, antes de afastar minhas mãos daquela pele de manteiga e voltar ao que precisa fazer.
O dia correu lento. Sendo a pura averiguação de plano, e eu tentando me esquivar dos questionamentos invasivos de Vel, que quebravam o sigilo da missão.
Precisei dar desculpas boas para retornar e buscá-la, pois é melhor apresentar o problema quando ele já é insoluvionável, do que assumir ter um problema do tamanho de Veronika quando eles ainda podem chutá-la de volta para a Rússia sem a minha presença e proteção. Velzinha vestiu a camisola de seda branca, refez a malas, encheu-me de perguntas, e agora sei que posso dominá-la mais facilmente do que nunca. Menti com tanta paz quanto nunca fiz antes.
Na hora de ir, ela vestiu um de seus casacos pesados e um cachecou vermelho vinho grande.
Estamos na neve, a caminho do centro da cidade, onde na rede de esgoto há saída para os túneis de conexão. Todos estarão lá de prontidão nos aguardando, com a tampa metálica da escotilha aberta no meio da rua.
Vel segura minha mão, e eu tenho a textura de sua pele contra a minha, e a sensação perseguidora de seus olhos profundamente curiosos presos na minha nuca enquanto avançamos, mas hoje lhe falta coragem para perguntar o que diabos estamos fazendo. Uma conexão especial entre o silêncio dela e a minha súbita iniciativa em controlar a situação sem que ela interfira em coisa alguma. Hoje, sou a inércia de empurra Veronika para onde eu bem entender, e ela estará onde quer que eu esteja, como eu quero esteja, fisica ou psicologicamente.
Chegamos ao asfalto, e a paisagem suavemente é trocada por pequenas construções de alvenaria de um pequeno centro comercial interiorano. Todos os estabelecimentos fechados às dez da noite, iluminação precária na via de mão dupla. Nossos passos arrastando no asfalto impecável enquanto caminhamos um pouco mais rápido e em silêncio. Sei que na próxima esquina encontraremos a entrada, e assim fazemos.
Não há muito para se ver, apenas a enorme tampa de cobre arrastada no asfalto, e a medida que caminhamos lentamente, o buraco que rumava para as linhas de esgoto da cidade. Eu paro em frente ao buraco obscuro, Vel às minhas costas, observando-me curiosa. Tudo o que se vê é o relance dos dois primeiros degraus da escadaria metálica. Jogo as malas no chão.
— Vamos entrar aí, Rex?
— Sim — assenti.
Encaro sua feição por alguns segundos, mas não quero interpretar o que está pensando. Me inclino e abro um dos compartimentos.externos de uma das bolsas. Pego uma balaclava, e encubro meu rosto finalmente.
Imediatamente me posiciono, pondo os pés para dentro da passagem estreita do túnel de esgoto. Desço alguns degraus, o suficiente para que minhas mãos segurem as escadas.
Abro uma das mãos em direção à Vel, que me observa ainda na rua, muito contrariada. Quase horrorizada.
— Me dê as malas — peço. Ela, ainda em profundo silêncio, me inclina e pega uma das malas, entregando-me pela alça.
Enquanto me seguro com uma mão, com a outra passo a alça da bolsa por cima da cabeça, jogando-a para as costas. Vel me entrega outra mala, e faço o mesmo movimento.
— Agora desça — lhe indico, descendo mais alguns degraus para que ela finalmente venha.
De todos os atributos, incontáveis detalhes e centenas de pequenas características que decorei sobre Veronika, numa espécie de museu pessoal, o mais vibrante e detestável, e ao qual eu dedicava todo o meu poder de observação e desejo era este: ela se interessava genuinamente pela vida, mas apenas quando queria. Apenas quando era a protagonista. Veronika se entediava em conversas tete a tete pois não podia monopolizar o monólogo, se entediava vendo peças de teatro pois ela própria gostaria de estar no palco.
Ela mataria por um punhado de atenção.
E sei que estava me obedecendo com maestria nesse exato momento, apenas porque acha que essa missão é uma aventura. Mais uma das suas aventuras. Ela bota seus calcanhares e solas nos degraus de aço e se segura nas bordas do buraco, desce com muito cuidado, e eu faço o mesmo vagarosamente.
Quando nos damos conta, estamos no numa pequena calçada interna, que beira um córrego seco dentro do túnel, o único resquício de luz que entra é o da própria lua lá fora, através do buraco. Um cheiro acre toma minhas narinas, como lixo envelhecido.
Eu me lembro da rota combinada, exatamente onde encontraria a equipe nesse subsolo. Mas quando faço menção de começar a caminhar, uma voz vinda do outro lado do túnel nos interrompe, me causando um leve arrepio.
— Quem é ela, Sargento?
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edelweiss | a könig storie.
Fiksi PenggemarKönig não podia escapar. O passado sulfúreo que emana dos muros e que flutua nas ruas de Viena o perseguiria para sempre. A luz amarela dos postes antigos que resplandecem nas calçadas molhadas, e evocavam a necessidade precípua que todo austríaco c...