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Tudo era turvo. Um borrão escuro, vultos passavam por ela, correndo, caminhando, Selene não sabia; vozes agitadas, passos violentos contra o chão de pedra, alguém chamando pelo seu nome sobre suas costas – mas seu sangue fervilhava, impulsionando-a a dar passadas mais rápidas para longe dali, longe daqueles dois castelos lado a lado que eram a Academia, longe do odor de sangue e enxofre e pólvora, o sabor acre na própria saliva de que tinha sido ela, ela, ela e somente ela.

O vento era cortante, sem o calor abafado e pútrido do fogo que fora cessado no gramado de Colonia Borhanci, deixada há muito para trás. Selene sentia os pés guiando-a para o nada, ultrapassando os limites da floresta que coroava o território da Academia. Galhos mais baixos roçavam seus braços acobertados pelo uniforme como mãos pedintes, o sussurro das folhas como preces e deleite.

Selene engoliu em seco, abraçando-se, fincando os dentes no lábio inferior. É só a floresta, apenas ela. Não são aquelas vozes, não são...

Ela parou de supetão, o arquejo condensado pela lufada de ar como fumaça diante dos lábios, o som úmido das botas pesadas contra a terra molhada. Seus olhos vagaram adiante; encontrou-se em um lago semicongelado, embora dificilmente ela diria que aquele lugar era uma clareira. As árvores pendiam na direção à água como se rendidas pela sua gravidade, criando sombras liquidas na superfície mal iluminada pela lua acima.

Aquele lugar... Selene sentiu os olhos pesados, deixando os braços penderem nas laterais. O silêncio era afável, sereno, à exceção dos temores do mundo. O vento era cuidadoso ao se entremear entre os galhos e a folhagem, respeitoso às árvores e à água que compartilhavam o sossego mútuo.

Ela olhou para as próprias mãos ainda manchadas de sangue e fuligem, o rosto daquele Orc ofuscando seus olhos como se estivesse entre suas palmas.

Selene tinha sentido aquilo antes, antes de lutarem contra Luther, quando ele anunciou que ela era uma Elemental das Trevas. Não ela − mas Celenia.

A Razvoyer do povo erdiano.

Selene nunca tinha feito aquilo, nem mesmo quando defendeu aquela menina daquele homem, o evento que deu origem à sua má reputação. Todo esse tempo, ela nunca tinha... Nunca tinha usado aquilo.

Essa palavra, esse nome sussurrado em fascínio por aqueles Orcs, em desgosto por aqueles goblins.

Razvoyer.

Razvoyer.

Seus dedos tremeluziram. Toda aproximação... será que ela tinha ficado traumatizada com a batalha contra Luther e tinha medo de qualquer aproximação desconhecida? Ou será que era Celenia, que agira por reflexo? Mas como Selene agiria dessa forma, quando sua essência estava dentro de dela todo esse tempo?

Selene tinha deixado esse assunto de lado por tempo demais. Não podia deixar que o julgamento consumisse seu tempo por inteiro quando tinha... A luz e as trevas dentro de si.

― Ce... – sua voz falhou com o impulso de chama-la, tentando fazer o poder borbulhar por entre suas entranhas. – Celenia... Celenia! – o berro cortou sua garganta, encarando as árvores e qualquer sombra humana que surgisse entre elas. – CELENIA! RAZVOYER!

Sua voz ecoou pelos troncos de árvores como se para apenas absorver o som, sem de dar ao trabalho de responder de volta. Selene voltou às mãos; sangue seco, nenhuma sombra molhada escorrendo por entre seus dedos. Como ela... Como ela faria para conversar com Celenia? Para perguntar o que tinha acontecido... Como ela poderia controlar aquilo?

― Selene.

Ela virou em um segundo, o coração estrondoso dentro do peito. Os olhos que a fitavam eram o reflexo dos seus: azuis obscurecidos pela penumbra da noite. Seu pai estava com o semblante cansado, mas os ombros retesados em preocupação na qual ela tanto conhecia – e tanto fazia para não provoca-lo.

Selene correu até ele e o abraçou; era sólido e real, e o medo... havia ficado à mercê das árvores, ainda presente, ainda ali, mas apenas observando.

― Filha... – suas mãos a apertaram contra seu peito.

Um soluço escapou da garganta de Selene, as lágrimas vertendo dos olhos sem que ela permitisse, voluntárias à dor que apertava no coração. Ainda conseguia sentir o corpo do Orc deslizando de suas mãos, sem vida, as sombras cravadas em seu peito como adagas cruéis.

― Eu não... – sua voz era embargada, rouca e trêmula. – Eu não queria ter feito aquilo... Eu não queria...

― Não foi culpa sua. – Jack afagou seus cabelos, a voz no topo de sua cabeça. – Se acredita que é, não a carregue sozinha. Não é culpa sua de o mundo estar infestado de demônios. Nem daqueles consumidos pelo seu sangue. – ele a abraçou mais forte. – Nenhum caos é culpa sua.

Selene não conseguiu dizer nada, o ruído do choro encobrindo sua garganta.

Ela mantinha as trevas dentro de si. O caos... ele era...

Seus olhos ergueram sobre os ombros largos de seu pai e, apesar da visão borrada e úmida, ela encontrou Maze. Ele se aproximou; estava uniformizado, a roupa e o rosto desprovido de austeridade salpicados de sangue.

Selene se forçou a parar de chorar, as lágrimas ainda caindo, e estendeu a mão para Maze. Seus dedos foram ao encontro dos seus; Jack pareceu nota-lo e envolveu um braço ao redor do rapaz, aconchegando-o para mais perto. Maze permaneceu com os dedos entre os de Selene sobre o peito, cálidos e quentes como se ela tivesse se aproximado de uma lareira – diferente da própria pele, álgida como os dias do inverno.


*


Antiga Mersin, Turquia − Cidade Subterrânea de Gigantes Nolkos

O sangue espirrou do último gigante como cordas de liras tocadas por seus irmãos, e logo se desfez ao chão como chuva para os homens.

O Nolkos caiu sobre a terra como uma grande montanha, o estrondo estremecendo a planície como o último suspiro de uma guerra. Ele contemplou a carcaça corpulenta daquele gigante; raça falada por seus irmãos, adotados como os "a galhada mais próxima d'Ele" – e que jamais dariam continuidade à linhagem.

Pois ele havia matado o último de Edenyn Erd.

A presença de Ambriel o alertou, seu rosto girando para encontrar o irmão.

― Não rastreei nenhum vestígio do que um dia foi aquela mulher. – O rosto de Ambriel voltou para o Nolkos, impassível.

Ele ergueu o braço para detrás das costas, a mão fechada ao redor do cabo da espada, a ponta da lâmina cravejando em sua espinha, correndo pelas suas costas como os homens embainhavam suas facas.

― Os Nolkos foram os únicos a recontarem o que aconteceu naquela terra. – Ele permaneceu encarando o corpo repartido da criatura. – O mundo havia sido, um dia, ordinário. Demônios atravessaram portais às ordens do filho da Estrela da Manhã. Agora este está morto, e dois mundos se uniram à força.

Mas ele sabia que sua espada não estava mais atrelada ao corpo da Razvoyer na qual tanto os gigantes pediam por misericórdia − uma espada dada por um deles jamais era atrelada à essência; caso fosse entregue a outrem, ele saberia onde encontrá-la.

No entanto, mesmo que a espada tivesse sido atrelada à essência dele próprio, aquele nome a tinha reivindicado. Ele não sabia como era seu rosto, de onde tinha vindo, mas para que tivesse parado nas mãos desse nome, a Razvoyer tinha que tê-la conhecido.

E ele avisara a Razvoyer. Deixara as palavras muito claras àquela mulher.

Se uma guerra entre anjos se iniciasse, não era culpa dele.

Era de Celenia. 

Elementais das Trevas - Falsos Deuses #4Onde histórias criam vida. Descubra agora