O DIA

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No dia seguinte, Soraya acordou animada. Levantou da cama, foi ao banheiro, fez suas necessidades, lavou o rosto, colocou seu robe cor de rosa, penteou os cabelos e desceu para tomar café enquanto lia as notícias. Fez o café e comeu com uns biscoitos de chocolate que achou no armário. Depois, fez seus minutos em silêncio de meditação, e começou a organizar a casa, nos detalhes: bateu as almofadas e organizou o sofá, organizou a estante da televisão que ficavam vários enfeites e fotos, virou de costas os quadros com foto dela junto ao marido, lavou o banheiro, na cozinha lavou a louça, limpou o fogão e passou um pano na bancada, até que César acordou. Ele entrou na cozinha, se sentou na mesa que ainda estava posta, e viu Soraya limpando tudo o que via pela frente e pergunta:
—Acordou animada hoje né, amor?
—Pois é, eu só vou dar uma organizada rápida na casa antes dela chegar. —Soraya responde percebendo César ali, pois não tinha percebido ele entrar na cozinha porque estava concentrada nos afazeres.
—Eu te conheço meu amor, você está fazendo isso para controlar a ansiedade e o nervosismo... Quer me contar o porquê de estar tão nervosa?
—Não estou nervosa, César. Só quero que a casa fique em ordem quando ela chegar, eu não converso  pra valer com ela desde o que? quase 30 anos atrás, não quero que ela pense mal... —Soraya responde com uma desculpa não só para César, mas pra si mesmo também.
—Jura? Porque o que parece, é que você está com medo de decepcioná-la. Ela foi sua professora, e vocês escreveram um artigo juntas, pelo que posso ver foi sua professora favorita. Então, você está com medo de decepcionar ela, e quer que tudo esteja na mais perfeita ordem para que ela continue te achando a "aluna perfeita". —César responde provando que conhecia muito bem sua esposa. Soraya o olha com um olhar intimidador, e ele abaixa a cabeça e toma um gole do café. Soraya volta a fazer as coisas.
—Relaxa Sory, eu arrumei a casa inteira ontem, tá tudo bem. —César diz, mas pareceu não adiantar em nada. Ele então terminou seu café, colocou a xícara na pia onde Soraya estava lavando, e guardou as coisas do café no armário. Pegou suas chaves do carro no balcão, foi até Soraya e lhe deu um beijão dizendo:
—Então eu já vou para meu passeio para deixar você e sua amiga sozinhas, e não decepcioná-la com um marido. —diz rindo, o que fez Soraya rir também. E ele continuou:
—E relaxa, ela vai gostar de você, você é brilhante, e se ela sabia disso na época da faculdade, sabe disso agora. E se não souber, então o problema está nela.
Soraya sorriu e ele se despediu saindo da cozinha, e quando estava prestes a sair para o quintal, grita para Soraya:
—Beijos, te amo.
—Também te amo. —Soraya responde terminando a louça.
Olhou em volta e viu que já tinha arrumado tudo, então colocou uns pães de queijo no forno, e foi para seu escritório, arrumou sua mesa e foi tomar banho, pois já estava quase na hora combinada. Hidratou seu corpo, lavou o cabelo, escovou os dentes, passou um creme no rosto, e foi se trocar. Vestiu um shorts jeans escuro comprido até o meio da coxa, mas largo, com uma fita rosa amarrada nele, e uma blusa rosa alaranjada. Desceu e desligou o forno com os pãezinhos, e poucos minutos depois ouviu a campainha. Foi até a porta e respirou antes de abrir. Abriu e viu Simone: ela vestia uma calça preta e uma blusa azul, e carregava uma bolsa e uma sacola ecobag.
Simone assim que viu Soraya, gelou. Pensou:
"Como ela está linda...meu Deus, como ela ficava linda de óculos...".
Então elas se abraçaram se cumprimentando com beijo na bochecha:
—Oi, bom dia, como vai? —Soraya pergunta enquanto a comprimentava
—Bom dia, eu vou bem e você? —Simone responde
—Ah que bom, eu vou bem também... Entra, seja bem vinda à minha casa, fique a vontade. —Soraya diz abrindo espaço para Simone entrar e fechando a porta. —Pode deixar sua bolsa aqui no sofá.
Soraya pega a bolsa da mão dela e coloca no sofá
—Eu trouxe uns waffles e um suco, não sei se você gosta... —Simone pergunta pegando em sua sacola
—Gosto sim! Não precisava ter se incomodado, vem, vamos colocar na cozinha para comermos depois.
As duas vão até a cozinha, e Simone observa a casa pelo caminho. Chegam na cozinha e Soraya pega as coisas de Simone e guarda na geladeira.
—Eu fiz pão de queijo para nós também. Sei que você gosta...
—Eu amo pão de queijo, você me conhece. —Simone diz rindo.
—Quer alguma coisa? Uma água, um suco? —Soraya pergunta
—Agora não... acho que podemos começar nosso dia. —Simone responde
—Claro, vamos até o escritório.
As duas saem e no meio do caminho para o escritório, Soraya se vira para Simone que a seguia e pergunta:
—Quer conhecer a casa primeiro?
Simone faz que tanto faz com a cabeça e Soraya a guia apresentando a casa. Mostrou tudo, até o quintal, onde apresentou sua cachorrinha a ela. Foi até a cadela que estava deitada e a pegou no colo, indo até Simone segurando a patinha da cadela e falando com voz fina:
—Eu quero que conheça a Deusdete, ela é minha filha e a coisinha que eu mais amo. —diz beijando a cabeça da cachorrinha. —Deusdete, essa aqui é a Simone, ela é uma amiga da mamãe. Sei que vocês vão se dar muito bem.
Simone ri da voz que Soraya fez e olhou para Deusdete passando a mão em sua cabeça:
—Oi Deusdete, você é muito linda. Você faz companhia para sua mamãe né?
Soraya coloca Deusdete no chão e segue com Simone para o escritório, abre a porta, pega uma chave na gaveta,  e abre outra porta que tinha ao lado de sua mesa. E entraram em uma verdadeira biblioteca. Não era muito grande, mas tinha uma prateleira enorme cheia de livros. Simone entrou e olhou em volta para o ambiente boquiaberta:
—Uau!!! Que lugar incrível e lindo. Você tem uma biblioteca em um anexo do escritório?
—Eu pedi para fazerem quando comprei a casa. Isso na verdade era para ser um closet hahaha.
—É muito bacana. Pelo que te conheço, esse é seu lugar preferido da casa né? Não deve sair daqui.
—Não mesmo hahaha Quando eu tenho um dia ruim, ou estou triste, eu venho para cá e fico o dia inteiro... Na época das minhas crises, eu não saía daqui de jeito nenhum. —Soraya diz se referindo a época que teve um princípio de depressão. E Simone sorri pensativa.
—Então, você trouxe um livro ou quer ler algum emprestado? —Soraya diz animada tentando animar o clima.
—Ah, eu trouxe um que estou lendo, mas depois de ver essa biblioteca que você tem aqui, eu vou querer ler algum hahaha. —Simone diz desviando seus pensamentos e olhando a prateleira.
—Ah claro. Pode escolher qualquer um. —se vira para sua mesa pegando um livro e mostrando para Simone —Eu terminei de ler esse aqui ontem. Ma-ra-vi-lho-so!
—Política é para todos. —Simone lê a capa do livro que Soraya segurava —Nunca li esse. Gostou?
—Muito bom! Realmente muito explicativo. —Soraya responde guardando o livro novamente.
Simone sorri e volta a escolher um livro na prateleira, até que pega um:
—Libertinagem, Manoel Bandeira.
—Ah não Simone, você já deve ter lido esse um milhão de vezes! —Soraya diz rindo enquanto escolhia um para ela também.
—O que eu posso fazer? Você sabe que eu amo esse autor. —Simone ri também e volta a procurar um livro.
—Eu vou ler esse —Soraya mostra o livro que pegou e Simone lê o título.
—"Como as democracias morrem", legal. Você adora esse estilo né?
—Você sabe que sim! —E sorri convencida fazendo Simone rir também.
—Aqui... acho que vou ler esse. —Simone pega um livro e mostra para Soraya.
—Ui, Vinicius de Moraes... —Soraya diz sorrindo e Simone sorri envergonhada.
As duas então se sentam no chão, Soraya encostada na sua mesa, e Simone encostada na prateleira, e começam a ler. Ficam ali por horas, concentradas nos livros, mas dando olhadas uma para a outra de vez em quando, aproveitando a companhia de ambas. Depois de umas 3 horas, Soraya fechou o livro se levantando, e chamou Simone:
—Vamos comer alguma coisa? Estou morrendo de fome.
Simone se levanta e concorda, seguindo Soraya até a cozinha.
—Você quer almoçar? Já são 12:00. Acho que tenho arroz, feijão, salada e um filé de peixe... —Soraya diz abrindo a geladeira e olhando para Simone
—Não, não estou muito a fim de almoçar. Vamos tomar só um café, pode ser? Ou você quer almoçar?
—Também não estou muito na vibe de almoço não hahaha vamos tomar um café.
Soraya pega as coisas e coloca na mesa que Simone estava arrumando, e coloca os waffles que Simone trouxe na air fryer. Pega a bandeja de pão de queijo no forno e despeja numa bacia grande que leva à mesa. Se senta com Simone e coloca café na xícara dela e na sua.
—E como está seu livro? —Soraya pergunta
—Muito bom, adoro Vinicius de Moraes. E o seu?
—É muito bom também. Ele mostra como uma democracia pode chegar ao fim, não só nas mãos de um ditador autoritário, mas de presidentes e primeiro-ministros eleitos democraticamente.
—Olha só, interessante... —Simone diz interessada
A air fryer apita e Soraya busca os waffles.
Ficam ali conversando e comendo por um tempo, depois voltam para o escritório para continuar lendo, e ficam por mais algumas horas, até o final da tarde, que Simone termina seu livro, fecha e fica pensando no que leu, enquanto observa Soraya ler, a admirando. Pensava a todo instante:
"Meu Deus como ela é linda!"
Soraya a percebe olhando para ela e sorri envergonhada, voltando sua atenção ao livro. Simone percebe que ela já estava na última página, e puxa assunto sobre algumas coisas que estava pensando:
—... Lembra aquele dia em que eu fui para a sua casa ler depois da faculdade?
—Qual deles? A gente fez esse programa tantas vezes hahaha. —Soraya responde fechando o livro mostrando que acabara, e se levantando para guardá-lo, pois odiava deixar fora do lugar.
—Aquele dia, depois da prova final do semestre. —Simone diz se levantando, colocando o livro na mesa e se aproximando lentamente de Soraya que estava de costas.
Soraya se lembra do dia, que era inesquecível para ela, e se vira para Simone, que já estava muito perto dela, e quando se virou ficou a poucos centímetros do rosto dela, sem poder se afastar, pois já estava encostada na prateleira de madeira na parede. Estava tão perto de Simone que conseguia sentir sua respiração que estava um pouco ofegante, e a sua começou a ficar também. Então, para disfarçar o nervosismo, tentou falar alguma coisa com muita dificuldade, pois as palavras não saiam e ela gaguejava, como se tivesse sido desconfigurada:
—Aquele... dia que... você leu Helena de Machado de Assis, e eu li Shakespeare? —Soraya pergunta mostrando que lembrava muito bem do dia, e Simone sorri confirmando com a cabeça:
—Esse dia mesmo...acho que foi... a última vez que nos vimos—se aproxima um pouco mais de Soraya a deixando presa na parede —Você se lembra de tudo o que aconteceu naquele dia? Parece que sim né.
—Co-como assim? A gente passou a tarde toda lendo e...
—Estou falando depois disso... você se lembra? —Simone pergunta olhando fixamente nos olhos de Soraya que não conseguia a encarar sem perder as palavras.
—De-depois?... Quando... quando a gente se...
Antes que Soraya concluísse, Simone que já estava a poucos centímetros da boca dela, a beija. O beijo se intensifica, e antes de chegar mais além, Soraya interrompe o beijo procurando palavras, e como não encontrou, vai para trás de Simone e fica de costas para ela pensando.
—Eu poderia me desculpar, mas eu acho que você também quis. —Simone diz olhando para Soraya de costas para ela
—Eu quis! —Soraya responde ainda de costas sem conseguir se virar para olhar Simone.
—Então, qual o problema? —Simone pergunta sorrindo
—Esse é o problema! Eu quis! Eu quis tanto, eu vinha esperando isso há tanto tempo, sonhando com isso...
—E o que achou? —Simone pergunta se aproximando, mas Soraya da um passo para trás
—Foi ótimo, ah, por que tinha que ser ótimo? —Soraya responde sorrindo e desviando o olhar com uma lágrima se enchendo no olhar.
—Eu não entendi... Não era para ser bom? —Simone pergunta confusa
—Era, claro. Foi do jeitinho que eu imaginava, mas é que... —Soraya se lembra do marido e interrompe sua fala para não falar demais.
—É que...? —Simone espera Soraya continuar
—Nada... —Soraya procura uma desculpa para não ter que falar do marido —é que eu não sei se é a coisa certa a se fazer...
—Por que não seria? Nós duas queríamos isso há muito tempo. —Simone responde
—É que, deve ter tido um motivo para não ter acontecido naquela época. —Soraya responde
—Sim, o motivo foi você sair correndo e se trancar no quarto. Mas hoje, nós somos adultas, podemos lidar com isso independente do que acontecer. —Simone diz
—Tem razão... Acho melhor esquecermos e seguirmos...
—Que? —Simone pergunta sem nem deixar Soraya terminar.
—Somos amigas, e você é minha melhor amiga, não quero estragar isso ou...
—Pode parar! Independente do que aconteça entre a gente, nada vai abalar nossa amizade. Somos muito amigas e temos essa conexão forte entre a gente que eu sei que você sente também, isso não é por acaso. O que aconteceu entre a gente naquele dia, e hoje, não aconteceu por acaso. —Simone diz e Soraya fica quieta —Você é a minha pessoa, Soraya. —Simone diz sorrindo, citando uma série que conversavam sobre, e soraya sorri. Simone se aproxima e passa a mão no canto da testa de Soraya descendo para o queixo e levantando este fazendo Soraya a olhar nos olhos. Iam se beijar novamente, quando Soraya escuta o barulho do portão abrindo e se afasta correndo pela sala nervosa:
—Aí meu Deus, você tem que ir embora...
—O que? —Simone pergunta sem entender
—Sai pela porta da cozinha e dá a volta no quintal. —Soraya fala tentando enxergar alguma coisa da porta de seu escritório pela janela da sala.
—O que? Por que? —Simone ainda sem entender—Quer me explicar o que está acontecendo?
—É o meu marido. —Soraya diz se virando para Simone que leva um choque com a revelação.
—Agora você precisa ir...
—Espera. Se eu sair assim escondido e ele perceber vai dar muito na cara. É melhor eu fingir que estou indo embora quando ele entrar. —Simone fala tentando acalmar Soraya
—Se encontrar com ele? Você pirou. —Soraya diz arqueando a sobrancelha
—Ui, nunca tinha te ouvido falar essas palavras, gostei. Deixou o vocabulário correto de lado no nervosismo foi? —Simone diz brincando e vê que Soraya não riu e ainda estava nervosa —Relaxa, ele acha que nós só estávamos batendo papo depois de muito tempo, não é? Então, ele não vai desconfiar de nada.
Soraya que já se conhecia bem e sabia que não sabia mentir para ninguém, mas principalmente para pessoas próximas, só deu um sorriso nervoso tentando mostrar que estava tranquila, e Simone percebeu e riu.
Foram indo para a sala, e Simone foi pegando suas bolsas para fingir que estavam se despedindo. Quando César entrou, viu as duas se despedindo:
—Então, muito obrigada por ter me convidado pra colocar o papo em dia, Soraya. Adorei conhecer sua casa. —Simone diz primeiro tentando disfarçar o nervosismo de Soraya.
—Ah, é. Imagina, Simone. O prazer foi todo meu. Muito obrigada por ter vindo.
As duas falam se abraçando e indo até a porta, e param em frente a ele que as olhava envergonhado.
Soraya que estava sendo olhada pelos dois, tentando manter naturalidade, percebe que estavam esperando ela os apresentar e assim o faz:
—Ah, desculpem... Simone, esse é o César meu marido. César, essa é Simone, minha professora na faculdade, e agora colega de trabalho.
Simone estende a mão para cumprimentar César, que faz o mesmo. Ainda segurando a mão de César, Simone fala:
—Muito linda a casa de vocês viu? Muito aconchegante.
César agradece tímido e Simone sai.
Soraya a acompanha até o portão, e César fica observando da porta. Simone a abraça mais uma vez, e passa para o outro lado do portão. Soraya arregala o olho para ela aliviada, como se tivesse dizendo alguma coisa. E Simone arregala o olho de volta sorrindo respondendo, mostrando que tinha entendido o sinal de Soraya para "ainda bem que deu tudo certo" e a resposta de Simone "relaxa".

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