Capítulo 31

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Rangi se sentia como uma oferenda num altar sombrio.

O vampiro a teletransportara para um corredor escuro que dava para uma
pesada porta de madeira. Ele destrancou a porta e abriu-a, arrastando-a para um quarto com tal brutalidade que ela tropeçou no chão frio de pedra. Ainda atordoada pelo teletransporte, deixou-se ficar junto à parte inferior de uma janela em arco, com cerca de seis metros de altura. O vidro fumê, embaçado, exibia inscrições feitas com ouro que formavam símbolos das artes negras.

O vampiro largou-a ali com um aviso:

– Não tente fugir. Ninguém consegue se teletransportar para dentro ou para fora desses aposentos, com exceção dele.

E voltou a trancar a porta.

Ela sentiu um calafrio, desviou o olhar da janela e se colocou de joelhos, ainda tonta, para examinar o quarto. Era um estúdio de trabalho com papéis sobre uma escrivaninha, embora estivesse muito úmido e fedendo a sangue velho.

Vindos de algum lugar, ouviram-se gritos, o que a levou a ficar de pé na mesma hora, andando em círculos. Que diabos ela fizera?

Antes de o arrependimento inundá-la, voltaram as lembranças do fogo. A
cena era nítida, como se ela tivesse estado lá.

Os pulmões de Kyoshi tinham sido tomados pelo fogo, e a Lykae reagira com mais violência do que quando a pele de sua perna, em bolhas, fora arrancada. Mas nunca lhes dera o prazer de ouvirem-na urrar de dor. Nem da primeira vez que morrera, nem da segunda, nem das outras vezes que se seguiram ao longo de 15 décadas, cada vez que ela era queimada e ressuscitava num inferno sempre renovado. O ódio tinha servido para mantê-la relativamente são, e ela se agarrara a isso.

E também se agarrava a isso sempre que as chamas diminuíam. Agarrou-se a isso quando percebeu que somente a sua perna a mantinha afastada da parceira, quando se forçou a quebrar o osso e também quando soltou a fera para poder…

Rangi deixou tombar a cabeça e sentiu o estômago revirar. A Lykae se agarrara a tudo aquilo até descobri-la – aquela que sentira na superfície, a mesma que, supostamente, deveria salvá-la

E tinha sido por eles que Kyoshi resolvera lutar.

Ela refletiu sobre como Kyoshi não a matara, como não cedera ao caos e ao ódio que se misturaram com a sua necessidade de reclamá-la para si e, por fim, poder esquecer o sofrimento. Como a Lykae conseguira não possuí-la de forma selvagem enquanto sua pele ainda queimava?

Kyoshi não quis que ela soubesse da sua tortura, e agora Rangi percebia o porquê disso. Sabia que precisava lhe contar sobre os seus sonhos com as lembranças da Lykae, mas o que poderia lhe dizer sobre essas coisas? Que tivera um caso apocalíptico de excesso de informação? Que, finalmente, conhecia a real extensão da sua tortura e tinha certeza de que nenhum ser vivo jamais passara por uma situação pior?

Como poderia contar a Kyoshi que tinha sido o pai dela quem lhe causara tanto sofrimento?

Parasitas maléficos e nojentos que deveriam estar no inferno.

Rangi quase vomitou, mas conseguiu segurar a náusea no último segundo. Não acreditava que Kyoshi pudesse odiá-la por causa disso, mas certamente aquilo seria corrosivo como uma gota de ácido que cai na pele e continua corroendo tudo. O pai dela destruíra praticamente toda a família de Kyoshi, uma família que ela obviamente amava.

Agora que sabia tudo pelo que Kyoshi havia passado, conhecia seus pensamentos e suas promessas de vingança, sentia-se extremamente
envergonhada por ter combatido sua intenção.

Especialmente agora que estava prestes a lhe tirar de vez esse peso das costas.

A decisão de Rangi estava tomada. Caída no chão frio de Kinevane, no meio de toda aquela carnificina, sua mente viajou loucamente. Sua vergonha e timidez intrínsecas foram derrotadas pelo célebre orgulho e pelo fabuloso sentido de honra das Valquírias, que finalmente haviam surgido dentro dela.

Desejo Insaciável (Rangshi)Onde histórias criam vida. Descubra agora