II. O lado negro da inocência.

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Priscila crescia rápido!

A vida do campo sempre é dura e transforma pobres crianças em adultos precocemente.

As tardes dos bons tempos, em que passávamos no campo, foram substituídas por uma rotina árdua. Nas frias manhãs do inverno, a pequena levantava antes do raiar do sol e caminhava dente a serração até o celeiro. Lá, ela ordenhava as cabras e as alimentava.... Seus dedos pequenos sempre estavam marcados de queimaduras feitas pela chaleira que ela usava para ferver o leite! Suas bonecas foram substituídas por toras de árvores que serviriam, mais tarde, como lenha para fazer o almoço e a janta... Era duro vê-la se matando desta maneira, mas a pobre menina prosseguia: sempre apressada, sempre dando o seu melhor para agradar a Mary. Sua árdua labuta só dava uma pausa na hora de ir para escola.

Eu sempre tentava acompanha-la e, de certa forma, ainda éramos apenas nós duas contra o mundo.

Falando em Mary.... Enquanto a doce criança perdia sua infância e seu brilho juvenil, sua mãe, empossada de uma amargurada tristeza inexplicável, transmutou-se em uma pessoa rude e apática. Sabe se lá Deus o que criou, ou como se formou, mas o desdém se fazia visível em seu olhar!

A mulher de lindos cabelos longos, de pele sedosa e aroma amadeirado foi substituída por alguém irreconhecível. Talvez fosse a velhice chegando rápido demais, ou, quem sabe, fossem as rugas (que se alastraram por sua face tão rápido que lhe causaram uma impressão desgostosa de um rascunho mal desenhado); enfim... Só sei que: Seu cabelo foi cortado em Chanel e, seu perfume foi trocado por um aroma doce e enjoativo. Andava, agora, cheia de brincos e anéis reluzentes. Presentes que havia ganho de "um homem promissor da cidade" ....

Isso, claro, era o que eu ouvia Priscila falar; mas, nem nenhuma de nós duas havíamos lhe visto pessoalmente.

Em uma das minhas melhores lembranças, Priscila e eu íamos acordar Mary. Geralmente, a doce menina levava para sua mãe em uma bandeja de metal, com uma xicara de café escaldante e bolinhos de chuva, que ela mesma fazia. Enquanto isso, repousava meu corpo no colchão e ficava a observar Mary comer. Era ali, naquele ínfimo e insignificante instante, onde recebia o melhor aconchego que poderia existir. Mary abria seus olhos e me esfregava suavemente a cabeça. Aquele ato me trazia de volta os sentimentos que tivera nas noites frias de minha infância, d'onde dormia ao seu lado e roubava ao seu calor para afugentar o frio e a serração da noite. Confesso que seu aconchego era vicioso! Mas, infelizmente, tudo aquilo havia ficado no passado. Sua compaixão e seu afeto pareciam ter se dissolvido junto ao brilho de seus olhos. No lugar deles, restara apenas uma nuvem negra; uma espécie de ódio que obscurecia as vistas e lhe petrificava seu coração.

A velha mulher, por alguma razão, já não se permitia mais demonstrações de afeto (nem comigo, nem com Priscila). Não havia uma explicação plausível, um "porque", "como", ou, "quando". Mas, eu sabia, lá no fundo, que aquele jovem da cidade era o culpado!

As confirmações de minhas suspeitas vieram logo a seguir. Mary perdeu o bom senso! A essas alturas ela saia de casa quase todas as noites. Era sempre igual: se arrumava junto ao entardecer e sumia das nossas vistas ao cair do sol. Na minha cabeça só havia uma explicação: Ela ia buscar a companhia daquele estranho e amaldiçoado homem!

Por vezes (na maioria delas, para falar bem a verdade), ela só retornava no outro dia. Sendo assim, sobrávamos apenas nós duas ─ Priscila e eu ─ trancadas em casa, temendo de medo dos monstros da escuridão e da noite. Na maior parte do tempo a minha menina se encolhia em um canto qualquer; nestas horas eu era a única para protegê-la. Por compaixão, silenciava meu espírito e fingia não ter medo das almas penadas que a madrugada traz consigo. Tinha de ser forte, não me restavam escolhas! Acabava sempre por inflar o peito e tratava de afugenta-los da minha amadinha.

Infelizmente, isso não era o bastante, afinal, eu não era capaz de livra-la em seus sonhos. E, nas noites frias do longo inverno a menina gemia, se debatia e suava, como fosse uma tarde de verão. Depois, como em um salto, ela acordava eufórica...

Podia ver tudo acontecendo a minha volta e, de alguma maneira, encarava os pesadelos e o mal-estar dela como uma reação inconsciente: Quanto mais Mary se distanciava da gente, mais seus pesadelos apareciam para perturba-la. Quando isso acontecia a adrenalina lhe tomava e ela acabava desistindo de dormir. Em um impulso, ela se levantava da cama, acendia um lampião ao lado da escrivaninha e ficava a escrever em seu diário até que os raios de sol transpassassem as gretas da janela.

Como resultado de todas essas mudanças, eu acabava por me sentir abandonada. O amor no coração de Mary parecia envenenado e, não fosse Priscila que ainda continuava a cuidar de mim como uma irmã, confesso que teria abandonado aquela casa mais cedo! Mas, foi somente quando vi aquele carro com imensos holofotes brilhantes em vermelho e azul que pude entender que: A partir daquele momento, minha vida nunca mais seria a mesma.

Richard era alto e esguio, tinha o rosto juvenil (apesar de seus 30 e tantos anos), com pele bem bronzeada, cabelos crespos e um palito de dente que parecia estar sempre com ele, rolando de um canto para o outro da boca. Ele fedia, tinha o cheiro de cobiça, maldade e morte.

A primeira vez que ele apareceu, meu corpo inteiro se arrepiou. Podia sentir o que tinha atrás daqueles olhos e, parecia que somente eu era capaz de ver através deles. Era capaz de alcançar algo por trás daquela máscara de falsidade, algo que Mary e Priscila não seriam capazes de acreditar. Foi por isso tentei impedi-lo; por isso fiz o que fiz; mas, confesso que não foi o bastante. Tentei impedi-lo de entrar naquela casa, tentei dize-lo que não precisávamos dele ali, mas, como sempre, ninguém me deu ouvidos.

Até então, eu ainda não conseguia entender o porquê elas não me compreendiam. No fim das contas fui eu que passei por errada!

Elas gritaram comigo, e Mary ─ a mesma mulher a quem um dia me deu seu próprio carinho e afeto ─ fez algo muito pior do que seria capaz de imaginar. Sem mais explicações; ela me tomou pelos braços e me arrastou pelo jardim. Logo em seguida, fui aprisionada em seu celeiro!

Fiquei trancada lá por dias, sem poder ver o sol, passando fome. Se não fosse Priscila que toda a manhã me trazia água e comida, acho que teria morrido ali, no anonimato e no esquecimento.

Depois daquilo, minha relação com elas nunca mais foi a mesma. Não era ódio ou rancor, só.... Confesso que de todos os dias da minha vida, aqueles foram uns dos mais sombrios e, de repente, o sentido de todas as coisas pareceu se perder.

As noites ali dentro eram imensas e, os dias abafados. O tempo parecia se arrastar e era incerto da manhã que me esperava. Tudo que podia fazer era me questionar, momento após momento, segundo após segundo:

"Porque isto está acontecendo?! Onde está aquela mulher, ao qual, um dia, me resgatou e me deu seu afeto e amor?! O que aconteceu com aquela a quem tanto cuidava de mim?!"

Minhas perguntas nunca seriam respondidas!

No fundo, sabia que Mary não me odiava, mas aquilo.... Aquilo era uma tortura sem igual. Uma tortura simplesmente inexplicável.

Até hoje, enquanto penso sobre isso, fico perplexa com a atitude que as duas tiveram.

Porque é que Mary ficou tanto tempo com ele?! Por que ela nunca desistiu...

Às vezes, as pessoas fazem escolhas inexplicáveis.

Talvez nunca consiga entende-la! 

Amor, meu doce amor. Um conto para a morte!Onde histórias criam vida. Descubra agora